o fisiologista, o viajante e o tempo
Universidade de Aveiro — exposição integrada no ciclo O Desenho como Pensamento | 09.02.23 — 25.03.23(Work by Lourdes Castro)
o
fisiologista
A obsessão do coleccionador, a sua identidade (o coleccionador de guilhotinas, parisiense, que se decapitou a si mesmo no dia de aniversário da morte de Maria Antonieta, com a mesma guilhotina).1
1. Harald Szeemann — “Musée d’artistes. Propositions concernant une exposition à l’Academie des Beaux-Arts de Berlin”, in Écrire les expositions. Bruxelles: La Lettre Volée, 1996, p. 53.
Este projecto expositivo, que integra apenas trinta e cinco obras da extensa colecção Eduardo Rosa, configura um singular estado de desordem que absorve uma certa poética do transtorno — linhas de força incorporam uma rede de combinações diferenciadas que o fisiologista aqui nos expõe como imagens sem lugar. Uma colecção, à semelhança de um corpo, é tecida por actividade desejante, possibilidades difusas e energia silenciosa. A cabeça perdida no delírio ou no excesso da atenção. A liberdade de si mesmo. Já não apenas uma atitude mas uma escolha que toma forma. Marcas que deslocam gestos e limites, cruzam temporalidades, palavras, matérias, textos. Nesta exposição, o desenho convoca aproximações ritmadas e errantes, perfura fronteiras estilísticas, cronológicas, geográficas e conceptuais, narrativas programáticas ou historicistas. Desarrumando géneros, disciplinas, arquivos, linguagens, documentos, objectos, é o desenho que instaura, em carne viva, a transversalidade, o fluxo e a voragem da arte. Sempre Artaud a conduzir-nos a outras geologias, distintos “pedaços do mundo” inscritos nas sombras destas obras:
A obsessão do coleccionador, a sua identidade (o coleccionador de guilhotinas, parisiense, que se decapitou a si mesmo no dia de aniversário da morte de Maria Antonieta, com a mesma guilhotina).1
1. Harald Szeemann — “Musée d’artistes. Propositions concernant une exposition à l’Academie des Beaux-Arts de Berlin”, in Écrire les expositions. Bruxelles: La Lettre Volée, 1996, p. 53.
Este projecto expositivo, que integra apenas trinta e cinco obras da extensa colecção Eduardo Rosa, configura um singular estado de desordem que absorve uma certa poética do transtorno — linhas de força incorporam uma rede de combinações diferenciadas que o fisiologista aqui nos expõe como imagens sem lugar. Uma colecção, à semelhança de um corpo, é tecida por actividade desejante, possibilidades difusas e energia silenciosa. A cabeça perdida no delírio ou no excesso da atenção. A liberdade de si mesmo. Já não apenas uma atitude mas uma escolha que toma forma. Marcas que deslocam gestos e limites, cruzam temporalidades, palavras, matérias, textos. Nesta exposição, o desenho convoca aproximações ritmadas e errantes, perfura fronteiras estilísticas, cronológicas, geográficas e conceptuais, narrativas programáticas ou historicistas. Desarrumando géneros, disciplinas, arquivos, linguagens, documentos, objectos, é o desenho que instaura, em carne viva, a transversalidade, o fluxo e a voragem da arte. Sempre Artaud a conduzir-nos a outras geologias, distintos “pedaços do mundo” inscritos nas sombras destas obras:
Segredos como superfícies. A terra e os seus
nervos e as suas solidões pré-históricas, a terra com geologias primitivas onde
se descobrem pedaços do mundo numa sombra negra como o carvão. — A terra é mãe
sob o gelo do fogo.2
2. Antonin Artaud — A arte e a morte. Lisboa: Hiena Editora, 1993, p. 41.
2. Antonin Artaud — A arte e a morte. Lisboa: Hiena Editora, 1993, p. 41.
o
viajante
Para mim, o desenho exerce um duplo fascínio: a surpresa constantemente renovada oferecida pela sua materialidade e a possibilidade única de visualizar um gesto.3
3. Guiseppe Penone — Guiseppe Penone, Dessins (org. Jonas Storsve e Laetitia Pesenti). Paris: Editions du Centre Pompidou, 2022.
Tensões entre obras e a complexidade física e material da arquitectura de três espaços expositivos, potenciam atmosferas psicogeográficas não sequenciadas. Como o ruído das portas quebradas ou uma máquina desarranjada, territórios de alteridade sem nome próprio ou identidade fixa — colecção nómada. Um deambular. Uma flânerie.4 Sem trajectos ou corpus determinados, famílias temáticas, técnicas, formais ou materiais, são as vozes diferenciadas dos artistas que nesta exposição operam conexões a partir das quais produzimos ou reequacionamos o sentido. Na ausência de uma sintomatologia particular, é o desenho que nestas propostas reclama múltiplas formulações ao nível dos suportes, iconografias e meios. A ele corresponde a exigente particularidade de viajantes maioritariamente confrontados com sucessivos desvios perante a autonomia disciplinar, capazes de reclamar a abertura de espaços em cada obra. Potenciar a aventura na tarefa da ligação. Transformar as regras do jogo. Desfamiliarizar. Pensar é ligar, escreveu Gilles Deleuze. Ou, à maneira de Szeemann, diríamos, “Einleuchten” [iluminar]5:
4. Átrio do Edifício Central e da Reitoria — Ed. 25 | Sala Hélène de Beauvoir | Átrio do Complexo Pedagógico, Científico e Tecnológico – Ed 23.
5. Referente à exposição “Einleuchten” [Iluminar], apresentada no Deichtorhallen, em Hamburgo (1989).
Para mim, o desenho exerce um duplo fascínio: a surpresa constantemente renovada oferecida pela sua materialidade e a possibilidade única de visualizar um gesto.3
3. Guiseppe Penone — Guiseppe Penone, Dessins (org. Jonas Storsve e Laetitia Pesenti). Paris: Editions du Centre Pompidou, 2022.
Tensões entre obras e a complexidade física e material da arquitectura de três espaços expositivos, potenciam atmosferas psicogeográficas não sequenciadas. Como o ruído das portas quebradas ou uma máquina desarranjada, territórios de alteridade sem nome próprio ou identidade fixa — colecção nómada. Um deambular. Uma flânerie.4 Sem trajectos ou corpus determinados, famílias temáticas, técnicas, formais ou materiais, são as vozes diferenciadas dos artistas que nesta exposição operam conexões a partir das quais produzimos ou reequacionamos o sentido. Na ausência de uma sintomatologia particular, é o desenho que nestas propostas reclama múltiplas formulações ao nível dos suportes, iconografias e meios. A ele corresponde a exigente particularidade de viajantes maioritariamente confrontados com sucessivos desvios perante a autonomia disciplinar, capazes de reclamar a abertura de espaços em cada obra. Potenciar a aventura na tarefa da ligação. Transformar as regras do jogo. Desfamiliarizar. Pensar é ligar, escreveu Gilles Deleuze. Ou, à maneira de Szeemann, diríamos, “Einleuchten” [iluminar]5:
4. Átrio do Edifício Central e da Reitoria — Ed. 25 | Sala Hélène de Beauvoir | Átrio do Complexo Pedagógico, Científico e Tecnológico – Ed 23.
5. Referente à exposição “Einleuchten” [Iluminar], apresentada no Deichtorhallen, em Hamburgo (1989).
“Einleuchten” quer estar o mais próximo possível da
aventura da criação da obra do artista perante a folha branca, na raiva ou na
doçura, na agressão ou reflexão, na mania ou na parcimónia.
“Einleuchten” é o lugar das marcas de viagens imaginárias ou reais.
“Einleuchten” é uma exposição com os artistas.
“Einleuchten” é a arte de utilizar o espaço, nem museu nem feira.
“Einleuchten” aguarda o nascimento da recordação, além do eco da actualidade.6
“Einleuchten” é o lugar das marcas de viagens imaginárias ou reais.
“Einleuchten” é uma exposição com os artistas.
“Einleuchten” é a arte de utilizar o espaço, nem museu nem feira.
“Einleuchten” aguarda o nascimento da recordação, além do eco da actualidade.6
6. Harald Szeemann — “Illuminer”, in Écrire les expositions. Bruxelles: La lettre volée, 1996, p. 140.
o
tempo
sou o dançarino ou o equilibrista que começa o dia com numerosos exercícios de flexibilidade de maneira que todas as partes do corpo lhe obedeçam.7
7. Henri Matisse — Escritos e reflexões sobre arte. Póvoa do Varzim: Editora Ulisseia, s/d, p. 151.
Uma exposição para desarmar o tempo. Aparentemente, as obras destes artistas têm pouco em comum. Todavia, artistas que não obedecem à ordem das circunstâncias ou dos acontecimentos, são artistas com algo em comum — sem tempo original, de todos os tempos. Não se objectivando num qualquer modelo de inventário ou como totalidade, esta proposta distancia-se de uma artificial unidade engendrada a posteriori. Nenhum arquivamento ou necrópole. Não se trata de desenterrar uma colecção ou desdobrar o tempo. Nenhuma classificação ou depósito, antes um aqui e agora benjaminiano no qual a ausência se instaura no presente, nele se reinscrevendo. Se, como enunciou Deleuze, o “actual” é o que somos em devir, e se a história é “o desenho do que somos e deixamos de ser”,8 também uma colecção é aquilo em que se vai tornando, o esboço do que a separa de si mesma. Como o “actual”, ela é já e sempre esse Outro, a abertura à estranheza, aos limites da nossa experiência que é a própria relação com o tempo. A paisagem que esta exposição reclama é a de sermos invadidos por “uma mesma voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as gotas”.9 Que em cada gota rodopie a embriaguez dionisíaca. A dança de Zaratustra sem um tempo-mestre:
8. Gilles Deleuze — O mistério de Ariana. Lisboa: Editora Vega, 1996, p. 93.
9. Gilles Deleuze — Diferença e repetição. São Paulo: Edições GRAAL, 1988, p. 476.
sou o dançarino ou o equilibrista que começa o dia com numerosos exercícios de flexibilidade de maneira que todas as partes do corpo lhe obedeçam.7
7. Henri Matisse — Escritos e reflexões sobre arte. Póvoa do Varzim: Editora Ulisseia, s/d, p. 151.
Uma exposição para desarmar o tempo. Aparentemente, as obras destes artistas têm pouco em comum. Todavia, artistas que não obedecem à ordem das circunstâncias ou dos acontecimentos, são artistas com algo em comum — sem tempo original, de todos os tempos. Não se objectivando num qualquer modelo de inventário ou como totalidade, esta proposta distancia-se de uma artificial unidade engendrada a posteriori. Nenhum arquivamento ou necrópole. Não se trata de desenterrar uma colecção ou desdobrar o tempo. Nenhuma classificação ou depósito, antes um aqui e agora benjaminiano no qual a ausência se instaura no presente, nele se reinscrevendo. Se, como enunciou Deleuze, o “actual” é o que somos em devir, e se a história é “o desenho do que somos e deixamos de ser”,8 também uma colecção é aquilo em que se vai tornando, o esboço do que a separa de si mesma. Como o “actual”, ela é já e sempre esse Outro, a abertura à estranheza, aos limites da nossa experiência que é a própria relação com o tempo. A paisagem que esta exposição reclama é a de sermos invadidos por “uma mesma voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as gotas”.9 Que em cada gota rodopie a embriaguez dionisíaca. A dança de Zaratustra sem um tempo-mestre:
8. Gilles Deleuze — O mistério de Ariana. Lisboa: Editora Vega, 1996, p. 93.
9. Gilles Deleuze — Diferença e repetição. São Paulo: Edições GRAAL, 1988, p. 476.
Por isso, a prática da repetição literal pode
ser entendida como o início de uma ruptura na continuidade da vida porque cria,
por meio da arte, um excesso de tempo não histórico. É neste ponto que a arte
pode, de fato, tornar-se
verdadeiramente contemporânea.10
10. Boris Groys — “Camaradas do tempo”, in Caderno SESC _ Videobrasil,v. 6, n. 6 (“Turista /Motorista”). São Paulo: Edições SESCSP, 2010
10. Boris Groys — “Camaradas do tempo”, in Caderno SESC _ Videobrasil,v. 6, n. 6 (“Turista /Motorista”). São Paulo: Edições SESCSP, 2010
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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia
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