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Um certo abismo é necessário para que nada aconteça






O tempo, porque separa e afasta, não é, desde logo, esse abismo que é preciso ultrapassar; é, na realidade, o fundamento e o suporte do processo no qual o presente tem as suas raízes.  [Hans-Georg Gadamer]



O tempo passa. Continuamos a repetição infinita. Todas as histórias são verdadeiras, não mudam. Uma, duas, três e assim sem fim. Ancien régime. Palavras. Aquilo que encontramos num outro lugar. A Terra move-se. Criamos estados e descrições. O mundo tornado lógico, uno e idêntico. A história interiorizada, convertida em verdade, puro efeito da história sobre a história, do sujeito sobre o sujeito. Mais labirintos e menos fundamentos. O jogo das diferenças possíveis. A pluralidade de sintomas. Menos epistemologia. Menos gnosiologia. Mais sintomatologia: a lição deleuziana. O pensamento como acção que no mundo se cumpre. O herói é alegre e isso terá escapado aos autores de tragédias, disse Nietzsche. Também declarou que todo o perfil do artista ditirâmbico é já o retrato completo de Zaratustra, esboçado com profundidade abissal. Ecce Homo — nunca se enganar acerca de si próprio. O vazio não chega. Apolo dissolve-se em Dionísio. A embriaguez trágica que nasce do múltiplo. A vontade e o devir. A afirmação como batalha decisiva. A linguagem trágica não conhece a resignação. Apenas o prazer. Obstinadamente. A fatalidade é apenas um desafio da fragilidade.

Um sistema de obrigações e a possibilidade de nada fazer. A coragem não é um assunto pessoal ­­— assim afirmou Deleuze para a literatura. Perder a cabeça na forma vital. À esquerda e à direita. A aurora e o crepúsculo. Por todo o lado. Sempre em espera. Sem ponto fixo. Acrescentar o canto da noite. Outros cânticos. Zaratustra-bailarino: saibam todos: a dor é um prazer, a maldição também é uma benção, a noite também é um sol, um sábio também é um tolo.Mergulhar no universo de Fontenelle ­— balões que se atiram uns contra os outros. Bolas de sabão ou a infinidade de esferas finitas. A atracção suave e violenta. Uma bola. Um mundo. Sempre prontos a explodir.

Falsificações e contrafacções. A cópia. Todos copiam. Mais. Ou menos. The names have been changed to protect the innocent, diz o herói perdedor. Desde Saussure que sabemos que o signo não é transparente. A certeza também não. Num só instante todos os limites se transformam na descoberta das coincidências. O erro e a crença. Códigos de guerra. A prudência. Move on — apesar de o perdedor não se mexer. O presente na qualidade do passado como presente que foi. O paradoxo da coexistência — a lição de Bergson em Deleuze — o passado não é uma dimensão do tempo mas a síntese do tempo inteiro da qual o presente e o futuro são apenas dimensões. O passado como o em-si do tempo, fundamento último da passagem — o nosso herói perdedor, já sabe o texto de cor, que é esse um caminho de destroços e cinza, um vislumbre de não-caminho, porque o leva aonde ele já está, ouvimos em MISSED-EN-ABÎME. A metamorfose do herói que conserva as partes vizinhas. Como as plantas de Goethe. Um estado de aproximação — o exterior vazio da atracção é talvez idêntico àquele outro, tão perto, da cópia, como afirmou Michel Foucault.

A doença no pensamento monocromático. O domínio do modelo cognitivo. A consciência. O pensamento como operação mental. A soberana razão determinante que paralisa. Solipsismo. A velha angústia e o organizado lamento que o poder administra para melhor conservar a tristeza. A lei que carrega a ordem. O vínculo silencioso na atracção inconfessada: a lei criticava vivamente a minha conduta: “eras muito diferente quando te conheci. — Muito diferente? - As pessoas não te ridicularizavam impunemente. (...) E, sobretudo, não me interroguem” — escreveu Maurice Blanchot. Por vezes os dias correspondem à espessura do Sol. A superfície também é adequada à escuridão. A vida e a morte. O herói torna-se o seu próprio poeta. Exerce-se como força e sem vingança. Introduz os deuses assegurando a polifonia através da qual o excesso se torna indispensável.

Lá, no império do fogo, na potência do exílio, a região na qual toda a presença se entrega à luz, cantamos a vida dos deuses. As vozes que salvam não pertencem à família da evidência. Aparecem como um voo ágil. Uma e outras formas. A performance — para além do bem e do mal.  Toda a aventura participa nesse espaço imaginário que se inscreve num tempo que nos é oferecido como um memorial. Tantas imagens. O que veem os olhos dos outros? La bohème, la bohème, ça ne veut dire plus rien du tout. Sem perigo. Dor limitada com final à vista. De tanto se arrepender acabou a murmurar no deserto. Enlouquecer num bosque. No mesmo sítio. Sem planos. Sem pretextos. Sem abrir a boca. Nem tudo o que é claro é simples.  Fazer do mistério o prazer. E Roland Barthes, a forma animal, prossegue: o combate deve funcionar à medida do indivíduo - tanto o romantismo como o sagrado se devem viver marginal e individualmente.



Afundar no verde. MISSED-EN-ABÎME. É indispensável um apropriado êxtase para desfazer o bom senso das ideias recebidas.


Livro de artista "Psicobiografia de um Herói Perdedor" que acompanha a performance "Missed-en-Abîme" de Rogério Nuno Costa
Mais info: www.rogerionunocosta.com/missed_en_abime


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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia


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