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Outros tantos são também os rios que correm ruidosamente (1)



[Texto escrito no âmbito do projecto "Modos de Usar" de Joclécio Azevedo]


 



Folha a folha. Peça a peça. Máquina e repetição. Entre cada uma baloiçam, para a frente e para trás, em plano inclinado,2 práticas colaborativas, forças da (in) utilidade e do trabalho, a linguagem e o pensamento. Ruidosamente, configuram as ferramentas e o capital objectivado do projecto Modos de Usar. A rotina naturalizada. Valor de uso e valor de troca. O corpo útil para a teoria e instrumentalização económica, não escapa a essa forma universal de todos os produtos a que Marx chamou “mercadoria”.


Como uma aventura na qual tudo se mistura e se encontra, é a gestualidade crítica do artista que durante o processo se vê confrontada. Sem qualquer garantia pois que outros tantos são também os rios que correm ruidosamente. Não se trata, fazendo nossas as palavras de Barthes sobre o querer ser escritor, de “ uma pretensão de estatuto mas [de] uma intenção de ser”.3  O artista, ele mesmo, processo. Sempre no meio, como um caminho que ao ser percorrido se vai descobrindo enquanto relação de relações:

1. Hesíodo - Teogonia. Lisboa: Imprensa Nacional —Casa da Moeda, 2005, p.53.

2. Plano inclinado é uma instalação - performance que integra o projecto “ Modos de usar”, produzido pela Circular Associação Cultural. Foi apresentada em 2020,no Centro da Memória em Vila do Conde, por Joclécio Azevedo e Carlos Arteiro.

3. Roland Barthes - Critique et verité, Paris: Editora.Seuil,1966, p.50.

Não penso que seja necessário saber exactamente o que sou. O mais interessante na vida e no trabalho é o que permite tornar-se algo de diferente do que se era ao início. Se você soubesse ao começar um livro o que se ia dizer no final, crê que teria coragem para o escrever? Isso que vale para ca escrita e para uma relação amorosa, vale também para a vida. O jogo vale a pena porque não se sabe como vai terminar.4

4. Michel Foucault – Dits et Écrits. Vol. IV, Paris: Gallimard, 1991, p.777.

E não é sempre a colaboração entre artistas um modo de provocação? Um vazio em espera? Um encontro fraterno capaz de se afundar em matérias informes? Circulação livre de energia, singularidades nómadas, como propõem Deleuze e Guattari. A destruição do Mesmo que impede a perpetuação do modelo. Instaurada a marcha da divergência e sem qualquer unificação, abre-se a fuga à soberania ritualizada da Lei. Sem cerimónia. Sem ordem. Sem complacência:
Aquele que contra ela queira fundar uma nova ordem, organizar uma segunda polícia, instituir outro Estado, encontrar-se-á sempre com o acolhimento silencioso e infinitamente complacente da lei.5

5. Michel Foucault - O pensamento do exterior. Sâo Paulo: Editora Princípio, 1990. p. 48

Atravessar a violência do abismo é a coragem dos heróis, de todos os que estão para lá da condenação ao destino ou agarrados a todas as figuras da morte. Percorrer as entranhas do deserto acompanhados da  intensidade nietzschiana segundo a qual não há tradução intelectual de tudo. Instalar-se no centro do fracasso. Sem culpa. Mais que uma metodologia, Modos de Usar convoca um programa artaudiano no qual se cruza política, experimentação e a pura inutilidade. A consagração da inoperância. No texto radiofónico Para acabar de vez com o juízo de deus, escrito em 1947 e publicado em 1948, Artaud proclama:


- Quero dizer que achei maneira de acabar de uma vez por todas com esse macaco e que se já ninguém acredita em Deus todos acreditam cada vez mais no homem.
Ora é precisamente o homem que hoje é necessário emascular.
- Como assim?
Como?
Visto por este ou por aquele prisma, o senhor não passa de um doido, de um doido varrido.
- Levando-o uma vez mais, uma derradeira vez, à mesa de autópsia para lhe refazer a anatomia.
O homem é doente porque é mal construído.
Temos que nos decidir a desnudá-lo para lhe extrair  esse animalejo que mortalmente o corrói,
deus
e juntamente com deus
os seus órgãos
Porque metam-me se lhes apraz num colete de forças
mas não há nada mais inútil do que um órgão.
Quando lhe conseguirmos um corpo sem órgãos tê-lo-emos
libertado de todos os seus automatismos e restituído à sua
verdadeira liberdade.
Voltaremos então a ensiná-lo a dançar às avessas
como no delírio dos bailes “musette”,
e esse reverso será
o seu verdadeiro direito6

6. Antonin Artaud – Para acabar de vez com o juízo de deus, seguido de O teatro da crueldade. Lisboa: & etc., 1975, p. 49-50.



No mesmo ano em que esta obra é escrita, mas agora no poema-carta do homem-árvore que redigira para ler na inauguração da exposição de retratos e desenhos da sua autoria, em 1947, na galeria Pierre, diz Artaud:



O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem
função,
mas de vontade
e árvore de vontade que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,
ingestão, assimilação,
incubação, excreção (…)

Nós somos 50 poemas,
o resto não somos nós mas o nada que nos veste,
se ri para começar de nós,
vive de nós a seguir.(…)
Porque realmente o homem-árvore,
o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade,
esse homem prosseguiu
sob a capa do ilusório do outro,
a capa ilusória do outro,
prosseguiu na sua vontade
mas oculta,
sem compromissos nem contacto com o outro.(…)7

7. Antonin Artaud – “Homem-Árvore.”(Carta a Pierre Loeb ) in  Eu, Antonin Artaud… p. 105, 106, 107.

Nervos, energia e activação do desejo, um homem- árvore sem órgãos nem função. Afirmam Deleuze e Guattari, reflectindo sobre a noção de corpo sem orgãos  que é necessário que cada um encontre o seu. Que o saiba fazer. Questão de vida ou de morte – é aí que tudo reside. Porque não, perguntam os autores, ver com a pele em vez dos olhos, respirar com a barriga em vez dos pulmões? Porquê o orgão-função? Já não suportamos os olhos para ver, os pulmões para respirar ou o cérebro para pensar. Resta-nos o corpo sem orgãos quando tudo o mais acaba. O que acaba é o fantasma, os significados e as subjectivações.8 Nada a oferecer. Apenas renunciar à gramática e disseminar o grito do corpo.

8. Ver sobre este assunto Gilles Deleuze e Félix Guattari – Capitalisme et Schizophrénie 2. Mille Plateaux,Paris:  Minuit, p.188.

Excluindo o mito da interioridade, Modos de Usar surpreende-nos com diversos tipos de enunciados, modos de comunicação que admitem a existência de tantas relações e possibilidades entre o nome e o objecto quantos os usos que formos capazes de inventar. Jogos de linguagem sempre em aberto. Se alguma interioridade pode ser reconhecida é apenas como fora de si, um exterior que toma o lugar:

Surge uma forma — menos do que uma forma, uma espécie de anonimato informe e obstinado — que desapossa o sujeito da sua identidade simples, o esvazia e o divide em duas figuras gémeas embora não sobrepostas, o desapossa do seu direito imediato ou seja EU e levanta contra o seu discurso uma palavra que é indissociavelmente eco e recusa.9

9. Michel Foucault - O pensamento do exterior. ...p.62.

A forma que é fogo. O ar que cava o estrondo. A forma que é força. O céu inteiro. Deslocamento crítico que se propõe afirmar uma prática instituinte potenciadora da heterogeneidade dos modos de subjectivar. Estes, produzidos por “instâncias individuais, colectivas e institucionais”, como assinalou Guattari,10 superam a clássica divisão entre o sistema social e o sujeito individual. Outros modos de usar, múltiplos contextos de produção e de recepção irrompem:

Que resta, pois, do pathos da razão que nos deveria ter dito o que somos? O imperativo da sapiência, “Conhece-te a ti próprio!”, transforma-se na divisa existencial: “Sê tu próprio!” É uma divisa ontológica de cavalheiro, que deixa a todos os parentes da casa a liberdade de ser aquilo que quiserem, contanto que simplesmente se lembrem de ser aquilo que quiserem, contanto que se lembrem de que existir significa ser da melhor família.(…) Por isso “Sê tu próprio!” quer também dizer. “Inventai-vos!”11

10. Félix Guattari - Caosmosis . Buenos Aires: Ediciones Manancial, 1996, p.11.

11. Peter Sloterdik – A Mobilização Infinita. Para uma crítica da Cinética Política ….p. 199-200.



Resgatar outras insatisfações não sitiadas pela obediência. Como pode um artista fazer explodir a Lei sem iluminar a sombra?




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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia

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