Da Abstracção
[ou a ocupação em demasia com um objecto]
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três diagnósticos
“Inúmeras pessoas, para não dizer todas, apenas se tornam loucas por se terem ocupado em demasia com um objecto.”1
“Um quadro como La Mariée é abstracto pois não tem figuração. Mas não é abstracto no sentido restrito da palavra. É visceral, se quiser. Quando se vê o que os abstracionistas fizeram depois de 40, é a pior coisa, são ópticos, estão realmente na retina até ao pescoço! “2
“O empirismo é o misticismo do conceito (...) ele trata o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-agora (...). Só o empirista pode dizer: os conceitos são as próprias coisas, mas as coisas em estado livre e selvagem, para lá dos "predicados antropológicos".3
1 François Sauvages - “Nosologie” — in, Michel Foucault - A História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007, p. 233. Sauvages foi um conhecido físico e botânico do século XVIII.
2 Marcel Duchamp , in - Marcel Duchamp. Engenheiro do tempo perdido. Entrevistas com Pierre Cabanne. Lisboa: Assírio e Alvim, 2002, p. p. 64-65.
3 Gilles Deleuze - Diferença e Repetição . São Paulo: Editora Graal,1988.
7 possibilidades
Um objecto é abstracção e extensão. Afastamento e proximidade. Um objecto é um mundo. Uma poética.
Um objecto que não apresenta propriedades espácio-temporais mas que supomos que existe, é um ente abstracto. Ou que subsiste, como na escolástica medieval.
O objecto. O que deve ser interrogado: a filosofia, a psicologia, a lógica, a arte, a política, a economia. O que deve ser perturbado: a hegemonia, a autoridade, o limite, a intenção. Forçar o impossível. Deleuze e Guattari — abstracção e esquizofrenia.
Objectos que as máquinas psiquiátrica e penal convocam. Borderline. Recalcamento. Perversão. Distúrbio. Psicose. Neurose. Histeria. Infracção. Burnout. Compulsão. Desordem. Falha. Obsessão. Anormal. Desvio. A Culpa e a Verdade.
O objecto. O museu sem musas. Administrado. Sem inquietação. Um cabinet sem curiosité. Objectos disfarçados pela mecânica do poder. Que tipo de objectos a lei faz surgir? A máquina administrativa e os seus imprescindíveis efeitos de poder: “passa pelo funcionário medíocre, nulo, imbecil, cheio de caspa, ridículo, puído, pobre, impotente, tudo isso foi um dos traços essenciais das grandes burocracias ocidentais, desde o século XIX. O grotesco administrativo não foi simplesmente a espécie de percepção visionária da administração que Balzac, Dostoiévski, Courteline ou Kafka tiveram. O grotesco administrativo é, de facto, uma possibilidade que a burocracia se deu."4
O objecto é transição e passagem. Composição e decomposição. Acontecimento. Forma, vazio, acção, palavra, cópia, modelo, simulacro. Abismo. Combinação infinita. Um choque. Um encontro: “é muito difícil escolher um objecto porque depois de quinze dias começa-se a gostar dele ou a detestá-lo.” 5
O objecto como ficção. O real. Lacan e o realismo especulativo. D´avance. [B.B.] Borges e Beckett. O sujeito e o objecto. O ovo e a galinha. A experiência mental de Schrödinger. O gato vivomorto. Insurreição: “se a filosofia grega recusa admitir a relação entre a palavra e a coisa, entre falar e pensar, a razão está, sem dúvida, no facto de o pensamento se dever subtrair à relação estreita entre a palavra e a coisa, na qual vive o homem que fala. O império desta língua" a mais falante de todas as línguas" (Nietzsche) sobre o pensamento, foi tão grande que o esforço maior da filosofia deve ser o de se libertar deste império."6 A crítica da justeza das palavras — interpretar o oráculo de Crátilo. Objectos: (I) a língua enquanto erro colectivo (II) o esquecimento.
4 Michel Foucault - Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, Editores, 2001,p.p..16-17
5 Marcel Duchamp , in - Marcel Duchamp. Engenheiro do tempo perdido. Entrevistas com Pierre Cabanne. Lisboa: Assírio e Alvim, 2002, p. 70
6 Hans - George Gadamer - Vérité et Méthode. Paris: Éditions du Seuil, 1976,p.268.
S. “De que maneira se deve aprender ou descobrir aquilo que existe talvez seja algo grande demais para ser conhecido por mim ou por você. Convém que nos contentemos com a confirmação do seguinte: não é a partir dos nomes mas sobretudo a partir das coisas que devemos aprender e investigar elas mesmas ou os seus nomes.”[4]
[4] Platão - Crátilo. Tradução de Celso Vieira a partir do texto grego. p. 65. https://www.academia.edu/11956096/O_Cr%C3%A1tilo_de_Plat%C3%A3o_tradu%C3%A7%C3%A3o_