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Carta à Menina Júlia


Porque estás a chorar?
Pode acontecer sem mais nem menos, por nada.
Marguerite Duras ­– Moderato Cantabile





Querida Júlia, o tempo está mais calmo apesar de o mar continuar agitado neste mês de Fevereiro. As tarefas diárias nada variam na privacidade doméstica, assim cumprindo o ritmo inevitável do ciclo da vida e da morte. As famílias, sobretudo as mulheres, sujeitam-se à organização produtiva do trabalho. Dentro e fora de casa, esforçam-se por sobreviver ao esgotamento e à desagregação. À moral, também. Organizar e desarrumar. A casa e o resto – adiar sem riscos. Cumprir obrigações. Num só dia, a vida de muitas mulheres pode ser equivalente ao trabalho de reparar uma cidade inteira. Gerir é o verbo da eficiência requerida. Governar o tempo – parece o slogan vital para o aperfeiçoamento da espécie.

Tudo isto te escrevo como um desabafo e a propósito de um espectáculo de teatro que vi ontem à noite. O texto foi escrito em 1888 por August Strindberg. Um autor sueco. Na rua, já depois de ter saído, noto que do século XIX à nossa actualidade um certo tipo de mudanças não produziu consequências relevantes. O mesmo ciclo de servidões. Continua a normalização do comportamento das mulheres na sua forma ajuizada – como Anne Desbaresdes em Moderato Cantabile, de Marguerite Duras, quando entra num bar e bebe “muito depressa o seu copo de vinho, como os homens”. O copo que não parava de lhe tremer na mão. A mutilação tem muitas configurações. Como a liberdade, por aqui, não prescreveu nem foi privatizada, as mulheres lutam por não renunciar a qualquer vontade própria e a desconfiar de categorias herdadas. Acredita, querida Júlia, que até de um grande teórico inglês da encenação, Edward Gordon Craig, me recordei enquanto assistia ao espectáculo. Dizia ele que a vida é o que podemos apresentar no teatro, não através de coisas vivas, mas de coisas que permanecem mortas até que o artista lhes dê vida. A Über-marionette e o naturalismo – humano, demasiado humano. No teatro como na vida.

Sobre a história e a guerra dos sexos podemos dizer que esta se cruza com a guerra de classes através de mecanismos coercitivos de submissão e controle. Como sabes, até a linguagem é marcada pela situação de classe e pela condição sexual. Analogias que pouco têm de ingénuas e nas quais conteúdo e forma se validam. Riqueza e respeito – o dinheiro e a moral, ricos e pobres, homens e mulheres – palavras que escutei ontem através de uma das personagens da obra da qual te continuo a falar nesta minha carta. Também naquela, e numa espécie de rememoração da Grécia antiga, a festa era reivindicada como momento de suspensão das classes sociais. Sempre a mesma palavra que sabemos fora de moda –desigualdade. Todavia, algumas mulheres não o admitem ou, eventualmente, ainda não o sabem. Entre a ordem natural e a ordem social, é a construção simbólica do corpo, o significado do masculino e do feminino, do viril e do sensível, que podemos ver reproduzida na divisão social do trabalho, nas hierarquias e aspirações sociais. Multiplicam-se em infinitas relações de força e visões do mundo que naturalizam a dominação masculina enquanto artefacto social. Que as mulheres, no fundo, apenas sejam toleradas é um enunciado demasiado cínico e impossível de objectivar. A tolerância parece filiar-se numa espécie de pensamento autoritário que diminui a abertura ao outro – e cada um é já vários outros –, qualquer que ele seja. Necessário, todavia, é ser capaz de estar para lá da fraqueza da aceitação.

Também assistimos à publicação de múltipla e abundante legislação sobre sexos e sexualidades, géneros e não binários, trans, os que estão para lá de tudo isto e os que hão-de vir. Na história do Ocidente, o sexo talvez constitua um dos objectos mais decretados e sujeito a prolífera discursividade. A analítica da regulamentação produz o isolamento.
Entre o interdito e a crença de que o sexo pode constituir um espaço de libertação ou de que nele podemos encontrar uma qualquer verdade do sujeito, resta-nos compreender que afirmar o sexo não significa dizer não ao poder e que apenas o mantemos prisioneiro do limitado paradigma da transgressão. Continuamos a perpetuar o jogo da vergonha e da culpa. A autoridade nunca foi comedida. Micro-poderes instauram regimes de classificação que determinam a economia dos desejos.Sabemos desde Espinosa que há corpos que potenciam outros. São esses os que nos convêm.


Acrescento, querida Júlia, que tem aumentado significativamente o número de mulheres mortas às mãos de amigos, maridos, namorados, amantes e desconhecidos. Algumas preferem fazê-lo elas próprias. Esgotaram o tempo de espera. Um beco sem saída do qual nada conhecemos. Obedecer e esperar. A infelicidade. Talvez não estejam bem em lugar nenhum. Ainda o limite. Sempre demasiado tarde. A vida não é, porventura, nada de especial mas insistimos em que alguma coisa lhe acrescente sonoridade e nos permita uma qualquer forma de celebração. As mulheres imobilizam-se no salão de baile. Aguardam quem as leve. Sonham com a próxima valsa. Suspensas e esquecidas de si mesmas na espera. A mãe. O pai. A família. As que gritam e dão passos largos, desatam a correr e atravessam todo o espaço como se a janela de uma gaiola ou os portões de uma prisão se abrissem para tudo modificar e impedir qualquer falsa partida. Endoidecem. Não é perigoso brincar com coisas sérias. Procuram o reino dos pássaros e os trajectos correspondentes – sons, cantos, rumores e desvios. Outras paisagens. Diferentes são os lugares que aquelas mulheres encontram na prática cartográfica do voo e na dança do mapeamento cósmico:


Foste por o meu destino
Era um parco papelzinho
Pra decidir quem amar1



Sabes, Júlia, acredito que o que nos é mostrado no teatro pode muito bem não se repetir durante toda a nossa vida. Ali submergimos num qualquer outro lugar. Parece-me tratar-se de uma questão física – de algo que se aproxima e assim permanece, se dissolve mas não nos abandona. Uma luta corpo-a-corpo – o lugar da posse mas ainda o da palavra que seria preciso teatralizar à maneira do “livro dos Logotetas, dos fundadores de línguas”2 que acabo de descobrir num texto de Roland Barthes. Escreve o autor que “para fundar até ao fim uma língua nova, é necessária uma quarta operação –teatralizar. Que é teatralizar? Não é decorar a representação, é ilimitar a linguagem”.3

Neste espaço liberto da amarra gramatical, a linguagem afasta-se da soberania da verdade, dando lugar ao que ainda não pode ser nomeado. É a velocidade do sangue e o ritmo do corpo que preparam a viagem. Imagens de um turbilhão. Apenas um passo. O encanto ou o abismo do apocalipse. O amor.

Não querendo ocupar em demasia o teu tempo, não posso deixar de concluir esta minha carta, querida Júlia, com mais algumas palavras da escritora de quem inicialmente te falei. Disse ainda Marguerite Duras, sobre as relações entre mulheres e homens, que “a coisa comum entre eles e nós é o encanto, e o encanto é a semelhança. Quer se seja homem ou mulher é descobrir que se é semelhante”.4 Recordo-me de ter visto um documentário sobre a obra cinematográfica daquela escritora, no qual dava um conselho a um jovem intérprete – repetia-lhe que “o segredo dos actores é enlouquecer, esquecer”.

O mar continua agitado, como te disse. Em certos momentos, o imaginário pode ser uma força paralisante. O corpo é o fantasma mas também o combate.





Tu sabes, Júlia – as senhoras têm muitos segredos. Possam eles funcionar como um sinal da nossa democracia.


1 Caio Gabriel – fragmento do prólogo do espectáculo.
2 Roland Barthes – Sade, Fourier, Loiola. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 9.
3 Roland Barthes – Idem, p. 11.
4 Marguerite Duras – A Vida Material. Lisboa: Difel, 1994, p. 46.



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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia

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