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Just a perfect day




A estrutura de cada êxito é, no fundo, a estrutura do acaso.1

BENJAMIN, Walter — Imagens de pensamento.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 70.



Pouco importa se o comboio parte vazio. Ninguém atravessa a linha. Já todos se mataram inutilmente. Cumprir o 6º mandamento. As regras são liberdades e violações. A história consome-se entre os destruidores e endurece com a sua própria regeneração. A coragem esgota-se em investidas temperadas. E não anunciou Aquiles na Ilíada que a vida dos homens seria penosa e que os deuses tinham já engendrado a deplorável humanidade? Não só a transmigração é incapaz de nos devolver almas mais purificadas como não vislumbramos a harmonia da unidade antropocósmica dos pitagóricos.


Conta Jean-Marie Domenach que, numa certa altura, Claude Lévi-Strauss convidou os etnólogos a estudarem a nossa inexplorada sociedade em vez dos papuas e pigmeus. Tendo disponíveis tantos mecanismos de análise e registo, nunca tivemos uma percepção tão imprecisa de nós próprios. Graças à enorme mobilidade, as transformações parecem ser mais rápidas que as dos investigadores: “sob uma certa camada homogénea, a nossa sociedade compartimenta-se e dissimula os aspectos de si própria que repugnam à sua mitologia”.2 A cada dia nos perdemos em retóricas apocalipticamente heróicas e imagens que nos enviam automatismos programados e imperiosos que se propõem compensar os nossos deficits. Entre o fitness e o gadget,a experiência histórica caminha de maneira vertiginosa para um desígnio sem qualquer finalidade. A teleologia abandonou o seu telos. Diariamente reclamamos a eliminação da pobreza, da desigualdade, da exploração, do desemprego, do género, do racismo, da guerra, do capitalismo, and so on — tudo acaba numa espécie de zapping reivindicativo e sublimado no paradigma da redenção. 

2. DOMENACH, Jean-Marie — O retorno do trágico. Lisboa: Moraes Editores, 1968, p. 312.


Nada parece fragilizar a capacidade empreendedora do poder disseminada em redes de conivências e valas de corpos em putrefação. O impulso para homogeneizar a subjectividade e organizá-la em função de enunciados universalizantes de referência, potencia os mecanismos de opressão. Procuramos coerências exemplares, as razões em fórmulas que perpetuam as estratégias dos aparelhos institucionais e os modos de agir enraízados. Aumentam as consultas de saúde mental — assim se chama à economia psi que reduz os factos sociais a mecanismos psicológicos, como bem sublinhou Guattari. Aclamada em discursos comercializáveis que abraçam uma certa narrativa, a mistificação do Outro encerra a má consciência imanente e promete novos amanheceres :


Há toda uma filosofia que pretende edificar-se sobre o “olhar do outro”, que me criaria uma exigência. Mas que outro? (...) O grande problema é, contudo, colocado, por esses cinco biliões e meio de “outros” reais que não encontramos, mas que sabemos pertinentemente que existem e que levam, na sua maioria, uma existência heterónima. “Que devo fazer?” é uma questão essencialmente política.3

3. CASTORIADIS, Cornelius ­­— A ascensão da insignificância. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1998, p. 140.


A miséria sem prazo de validade continua sem encontrar alguma beleza capaz de limitar a impotência da acção política. As ideologias totalitárias — que nunca desapareceram — estão cheias de biografias épicas e dramas morais que culminam numa incontável quantidade de mortos e outros tantos conspiradores. A realidade sempre a lembrar-nos o sentido como farsa, numa espécie de reminiscência apropriacionista do marxismo, ou, se preferirmos, o universo situado na fronteira do enigma. Nada aparece onde esperamos. De tempos a tempos, num excesso de crença, heróis e deuses ocupam o nosso espírito. Subitamente arrastam-nos para desconcertantes circunstâncias que, impiedosas ou admiráveis, organizam a ordem esquematizada da realidade.


Conceptualmente, a ideia de uma “terra inabitável”4 cada vez se aproxima mais de uma representação que configura o mundo — as alterações do clima “High and Dry”, constituem  outras formas da guerra e da violência. No entanto, a nossa realidade geológica não é apenas humana pois, como sabemos, é a do poder do capital. É este que aparece dissimulado nas narrativas do antropoceno, nos discursos ideológicos da responsabilização de todos e na culpabilização  indiscriminada. As alterações climáticas, aliás, estão assinaladas desde há muito na nossa história. O que agora constatamos é que será o sistema climático a entrar em guerra connosco:

4. WALLACE-WELLS, David — A Terra inabitável. Como vai ser a vida pós-aquecimento global. Lisboa: Editora lua de papel, 2019. Diz o autor que o Banco Mundial no estudo “High and Dry” refere que as “consequências da mudança climática serão canalizadas essencialmente através do ciclo da água” (p. 127).

Foi isso que o oceanógrafo Wallace Smith Broecker, que ajudou a popularizar o termo “aquecimento global” quis dizer quando chamou ao planeta “animal em fúria”. Também poderíamos chamar-lhe “máquina de guerra”. E todos os dias lhe damos mais armas.5

5. Ibid., p. 45.

As marcas humanas não destruíram somente o mundo natural. Multiplicam-se as repressões e pressões quotidianas na vida pública e privada. Silenciam-se e integram-se os contestatários em guetos de aparente democracia. Tudo se precariza. Até a revolução. Já não se trata de construir uma maquinaria prometaica submetida a figuras demagógicas de socialização. A existência torna-se no lugar do empreendedorismo, das conversas de auto-ajuda, do êxito: “os trabalhadores agora trabalham mais e mais duramente, em condições deterioradas e com um pior salário”.6 O poder continua intolerável apesar das lutas contra a exploração, das reivindicações sociais, das posições de combate. É ainda a sociedade contemporânea que, reforçando o direito ao corpo e articulando-o cada vez mais com o sexo enquanto teatro de operações políticas, reproduz o corpo ideológico em torno do qual se fabricam significados, se regula e define o sujeito. Assim, “contra o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo mas os corpos e os prazeres.”7 A liberdade passou a corresponder a uma das formas do entretenimento.

6. FISHER, Mark — Realismo capitalista. No hay alternativa? Buenos Aires: Editora Caja Negra, 2016, pp.137-138.
              7. FOUCAULT, Michel — História da sexualidade I. São Paulo: Editora Graal, p.147.



Praticantes notáveis na exterminação, apenas nos falta aniquilar a espécie humana. Será este o segredo trend do especismo. Nobre pretexto e modesta tarefa para a civilização. Todos diluídos na massa enquanto a banalização dos factos ocupa o lugar agonizante da morte. Um sistema no qual todas as relações são empobrecidas por práticas disciplinares e a multiplicidade das formas individuais de existência  são condenadas à ordem vigente. Avança o sonho clandestino dos predestinados à catástrofe. São evocados os sintomas dos nossos  terrores — o desastre torna-se um sabotador inevitável. Familiarizados com a vitimização, conservamos a miséria de uma realidade que caminha para o abandono. Todos os lugares parecem indiferentes. Nada perturba. A phronesis desvanece. A fatalidade é a armadilha.  Sempre interminável o conflito entre a insistência de viver e o medo de paralisar. A coragem enterrada na areia da história.


Enquanto concluo este texto é anunciada a morte de um artista maior para quem os filmes resultavam de uma necessidade. Lembro-me de um texto de Paul Veyne que, a propósito de Michel Foucault, conta que um dia este se levanta da mesa de trabalho e lhe diz: “não acha que certas obras mestras possuem uma esmagadora superioridade sobre outras? Para mim a aparição de Édipo cego no final da obra de Sófocles...”8 Assim é o cinema de Godard — entre a grandeza do risco  e a audácia da tragédia. Sem ilusão. Sem desilusão. Apenas a fraternidade do amor e a crítica radical ou, como o próprio afirmou, “ter os pés no chão”.9

8. VEYNE, Paul — Critique, Paris, Vol. XLIL, n.°s 471-472, pp. 933-941, 1985. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento (texto em linha: http://michel-foucault.weebly.com › uploads )
              9. GODARD, Jean-Luc —Introdução a uma verdadeira história do cinema. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1989, p. 304.


The King is dead:

Os melhores filmes que fiz são exatamente os que não fiz... Gostaria de fazer um dia um filme sobre mim mesmo que se chamaria “Os meus filmes” e que consistiria simplesmente em contar os filmes que não fiz e os filmes que nunca farei.10

10. Ibid., p. 305.


Inventam-se filmes para que seja possível usar certas palavras e imagens. Fracassar num outro lugar:


A história das formas é realmente a embriologia, a história do corpo humano.11

11. Ibid., p. 306.


Como  enunciava Driant Zenelli, no pavilhão da Albânia na Bienal de Veneza, 2019, maybe the cosmos is not so extraordinary. Talvez nos reste, como diz Hamm a Clov, “uma espécie de imensa piedade.”12 Enquanto não triunfamos sobre a nossa débil condição de humanidade programada e vivemos o aprisionamento comum, ninguém escapa ao que gostaria de ter sido — o devir como horizonte impedido. O que não chegou a ser. A história sem história. Nenhum século é mais  nefasto, livre ou virtuoso que outro. Apenas mais um dia.

12. BECKETT, Samuel — Fin de partida. Barcelona: Fabula Tusquets Editores, 2006, p. 75.

Just a perfect day.




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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia


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