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Classificação X para tableaux vivants 


 




Goza a vida, meu amigo, goza a vida, e não julgues… goza-a, digo-te eu, deixa à natureza o encargo de te conduzir por onde ela quiser e ao Eterno o de te punir.

(Donatien Alphonse François de Sade)







Corpos que entram e desaparecem. Anónimos e recortados, apelam a outras liturgias. Silenciosos e placidamente vivos. Idênticas significações. Quase as mesmas cenas. Sabendo que a enunciação discursiva das sociedades modernas abandonou a obscuridade do sexo, consagrando-se a falar dele para melhor o circunscrever ao espaço do segredo, o programa artístico que se manifesta nas obras de João Gabriel não atribui qualquer relevo ao acto sexual. As imagens oferecem-nos a relação dinâmica e intensa que a temporalidade do antes e depois instaura — a possibilidade de subtrair os corpos ao estereótipo do centro inviabiliza o aparelho semiótico. Convocando umintermezzo visual produtor da matéria onde o desejo se activa, corpos prováveis aguardam a multiplicação de novos prazeres.



Ticiano e Tintoretto, Velázquez e Goya ou Hockney, Fischl, Basquiat, Baselitz e Kiefer, configuram algumas das referências plásticas já expressas pelo artista noutras circunstâncias. Todavia, são os filmes porno gay underground dos anos setenta que representam de forma mais directa o ponto de partida destes trabalhos. Se, por um lado, a proliferação de discursos sobre o sexo não conduziu à autonomia dos corpos, por outro, o eventual carácter transgressor e marginal da pornografia apenas se continua a eternizar num sistema que lhe confere o lugar do interdito e da reprodução social, assim a moralizando. Há muito que a subversão deixou de ser a antítese da repressão.



Substancialmente performativos, os gestos pictóricos que na tela se objectivam não são lugares de dissimulação dos corpos ou do sexo mas o registo efabulatório das pulsões que, sem mecanismos explicativos e liberto do teatro de operações políticas, assim investe o que se propõe mostrar. Confrontando-nos com uma espécie de retórica da visão, é a  hermenêutica de uma certa  mise en  scène  sem artifícios que se organiza e deambula nas incógnitas figuras:

No campo escópico, o olhar está do lado de fora, sou olhado, quer dizer, sou quadro. É aí que está a função que se encontra no mais íntimo da instituição do sujeito no visível. O que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora. É pelo olhar que entro na luz e é do olhar que recebo o seu efeito. (…) O olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna, e pelo qual, (…) decompondo-o, sou foto­grafado.1

1. Jacques Lacan — O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro. Zahar Editor, 1988, p.104.

Entre o que somos, o que olhamos e o que vemos, o que se dá a ver e o que queremos ver, há toda uma relação sustentada no engano:

Modificando a fórmula que é a que uso para o desejo enquanto inconsciente — o desejo do homem é o desejo do Outro — direi que é de uma espécie de desejo ao Outro que se trata, na extremidade do qual está o dar-a-ver. 2

2. Ibid., p.111.

A cabeça sobrecodificada — a que Deleuze e Guattari chamam rosto — é, além do mais, o que o artista nos oferece. O rosto bunker, sobrepondo-se ao retrato, consubstancia-se em pinceladas enigmáticas e fortuitas que tanto ocultam como tornam visível. À maneira de Levinas,  parece ser no rosto que se dá o Outro, o encontro, a potência que afasta cada um da sua soberania. Fica por descobrir se esta superfície axiomática de rostos organizados, não conformes às relações binárias ou à ordem da normalidade — e que nestas imagens parece operar no campo micropolítico da pornografia entre homens — (des)conhece a grandeza das velocidades singulares e os efeitos político-sociais da clandestinidade. Irrompendo no esplendor da superfície e atravessadas pela experiência de acontecimentos biográficos, estas pinturas expõem corpos que não se afirmam na origem do social mas, antes, no seu limite.



Uma exposição na qual a identidade se desfaz e o Outro se revela. Como escreveu Jean-Paul Sartre, “um puro buraco no mundo” — apenas o cenário da alteridade. Não há outra coisa. O que os corpos escondem os rostos não mostram. Épor trás daquela janela  que o voyeur é olhado pelo quadro. Descobre que a pintura não morreu e nela acaba por sucumbir.

https://www.lehmannsilva.com/exhibition/por-tras-daquela-janela/




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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia


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