Notas sobre as tristezas que
vagueiam entre os mortais.
An Artist is Always Working Na verdade sente incentivo ao trabalho quem vê rica a pessoa que se afadiga a arar a terra, a plantar, a bem dispor a casa; o vizinho inveja o vizinho que busca a abundância. Boa é esta luta para os mortais.1
Um site. An Artist is Alaways Working.2 Um objecto crítico enquanto lugar que faz do trabalho o que ele é. Instrumento da prática artística que opera sobre si mesma. Um aparelho de produção que integra os aparelhos ideológicos das sociedades capitalistas. Duração e processo. Recordando Daniel Buren: um espaço que, singularizando o contexto, determina o trabalho do artista. Arte in situ.
O que “os artistas fazem não é trabalho” — disse Flaubert que esta é uma das nossas ideias pré-concebidas.
Sem limite de dias e horas de trabalho, sem horário. Sem as leis da fábrica, combinações viáveis. A paragem como bloqueio à expansão do capital ou um artista que está sempre a trabalhar. O intervalo. A divisão capitalista do trabalho e da vida. O tempo de trabalho e o número de horas trabalhadas convertidas em actividade vital, para falar como Marx, ou a vida produtiva propriamente considerada. Para além do bem e do mal: “ os artistas (...) sabem bem que só quando já nada fazem “arbitrariamente” e tudo fazem por necessidade, é que o seu sentimento de liberdade, subtileza, pleno poder, criatividade, ordenação e configuração atinge o auge - em resumo, necessidade e liberdade da vontade são, para eles, uma só coisa.”3
1 Hesíodo - Teogonia. Trabalhos e Dias. Lisboa: Editora Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2005, p. 92.
2 Pedro Barreiro iniciou a performance An Artist is Always Working, no dia 11 de Novembro de 2020 sem data para terminar. É, nas palavras do próprio, “ uma performance duracional que acontece a todas as horas e minutos e que inclui todas as situações do dia-a-dia do artista. Pode ser acompanhada no site www.alwaysworking.art, onde são sincronizadas, em tempo real, as coordenadas geográficas do artista – o local onde está a acontecer a performance – e sinalizados todos os momentos em que o artista tenha uma ideia. No final de cada mês o site emite um relatório destas actividades”.
2 Pedro Barreiro iniciou a performance An Artist is Always Working, no dia 11 de Novembro de 2020 sem data para terminar. É, nas palavras do próprio, “ uma performance duracional que acontece a todas as horas e minutos e que inclui todas as situações do dia-a-dia do artista. Pode ser acompanhada no site www.alwaysworking.art, onde são sincronizadas, em tempo real, as coordenadas geográficas do artista – o local onde está a acontecer a performance – e sinalizados todos os momentos em que o artista tenha uma ideia. No final de cada mês o site emite um relatório destas actividades”.
O que “os artistas fazem não é trabalho” — disse Flaubert que esta é uma das nossas ideias pré-concebidas.
Sem limite de dias e horas de trabalho, sem horário. Sem as leis da fábrica, combinações viáveis. A paragem como bloqueio à expansão do capital ou um artista que está sempre a trabalhar. O intervalo. A divisão capitalista do trabalho e da vida. O tempo de trabalho e o número de horas trabalhadas convertidas em actividade vital, para falar como Marx, ou a vida produtiva propriamente considerada. Para além do bem e do mal: “ os artistas (...) sabem bem que só quando já nada fazem “arbitrariamente” e tudo fazem por necessidade, é que o seu sentimento de liberdade, subtileza, pleno poder, criatividade, ordenação e configuração atinge o auge - em resumo, necessidade e liberdade da vontade são, para eles, uma só coisa.”3
3 Friedrich Nietzsche - Para além do bem e do mal. Lisboa: Relógio D´Água Editores, 1999, p.157.
Arte e trabalho. O produto da relação que cada um estabelece com o trabalho e consigo mesmo, aplica-se, igualmente, à relação do homem com outro homem e, portanto, do artista com outros artistas: “ na relação do trabalho estranhado, cada homem considera, portanto, o outro, segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como trabalhador. (...) Se o produto do meu trabalho me é estranho, a quem pertence, então?”4 É a relação do artista com o próprio trabalho que, igualmente, constrói a relação do capitalista com o trabalho.
4 Karl Marx - Manuscritos Económico - Filosóficos (1884). São Paulo: Bomtempo Editorial, 2004, p. 86.
5 Sobre as relações entre arte contemporânea e trabalho ver o nosso artigo Casos há em que a vontade segue a sua marcha. Revista Contemporânea, Lisboa, nº 6-7, 2019.
6 Lulu Massa , personagem do filme - La Classe Operaia Va in Paradiso, 1971.[Direcção de Elio Petri, Produção de Ugo Tucci, Argumento de Elio Petri e Ugo Pirro. Euro International Films, 125 min aprox., cor, som.]
6 Lulu Massa , personagem do filme - La Classe Operaia Va in Paradiso, 1971.[Direcção de Elio Petri, Produção de Ugo Tucci, Argumento de Elio Petri e Ugo Pirro. Euro International Films, 125 min aprox., cor, som.]
A proximidade com o poder financeiro apenas espelha a condição geral em que se encontra, a da estrutura mercantil. Sendo a arte parte integrante da superestrutura e indubitavelmente determinada pelo modo de produção e pelo sistema económico, é cada vez mais clara a sua dependência absoluta das condições sociais de produção.5 Diversas formas do trabalho. A divisão e o valor.
Do trabalho como modo de servir, actividade remunerada, forma de usar o tempo ou ainda prática de sobrevivência em época de sobre-abundância marcada pela precariedade e escassez de recursos, ficará por compreender a história da espécie que talvez mais energia despende a trabalhar. O cansaço e o esforço naturalizados. O círculo repetitivo da competitividade e do êxito. A submissão. Capturados. Na arte como na fábrica. Diferenças e modos de produção articulados. Novidade, acumulação e eficiência. Mercados transnacionais. Artistas e operários que vão para todo o lado. Como na globalização. Também vão para o Paraíso: “eu sou uma máquina, eu sou uma roldana, eu sou uma rosca, eu sou um parafuso, eu sou uma correia de transmissão, eu sou uma bomba, aliás, a bomba está estragada, não funciona mais, e agora não pode mais ser reparada.”6
Do trabalho como modo de servir, actividade remunerada, forma de usar o tempo ou ainda prática de sobrevivência em época de sobre-abundância marcada pela precariedade e escassez de recursos, ficará por compreender a história da espécie que talvez mais energia despende a trabalhar. O cansaço e o esforço naturalizados. O círculo repetitivo da competitividade e do êxito. A submissão. Capturados. Na arte como na fábrica. Diferenças e modos de produção articulados. Novidade, acumulação e eficiência. Mercados transnacionais. Artistas e operários que vão para todo o lado. Como na globalização. Também vão para o Paraíso: “eu sou uma máquina, eu sou uma roldana, eu sou uma rosca, eu sou um parafuso, eu sou uma correia de transmissão, eu sou uma bomba, aliás, a bomba está estragada, não funciona mais, e agora não pode mais ser reparada.”6
Visitar o hospício: “os pobres ficam loucos porque têm pouco e os ricos ficam loucos porque têm demais”,7 diz Militina que tentara estrangular o chefe por este não ser capaz de responder à utilidade do que fabricavam. Os artistas e a utilidade. Ainda. A divisão cultural que é social. O poder. A inutilidade de todos os que vislumbram a possibilidade de outros silêncios.
7 Militina, personagem do filme de Elio Petri - La Classe Operaia Va in Paradiso…
Como no filme de Elio Petri. Quanto vale um dedo? Quanto custa a liberdade? Quanto vale a revolução? Quanto custa o trabalho? Quanto vale o trabalho? A greve. Eles não usam black - tie. Tudo mudará. No interior da nossa cabeça. Nada nos impede mas o tempo passa. O tempo falta. A vida. Todos os dias.
A arte. Entre ela e a grandeza, a escassez do sangue. A eternidade. Vê-se. Sempre o hábito que afunda. O trabalho. Tudo somado. Always. Acontece asfixiar o corpo e fechar a vida. Obras saturadas pela mesma espera. Tristezas de quem já nada parece esperar: “ Não estamos uma polegada mais próximos que Parménides ou Platão de qualquer solução verificável do enigma da natureza e da finalidade da nossa existência, se é que a tem, neste universo provavelmente múltiplo.”8
8 George Steiner - Diez(posibles) razones para la tristeza del pensamento. Madrid: Ediciones Siruela, Biblioteca de ensayo, 2008, p. 100.
Em todo o lado a imobilidade e a escuridão. A expulsão do Paraíso. Sem qualquer verdade em terra firme. Nenhuma fórmula para o tempo. O começo ou nenhum. Todos os sons, no melhor dos casos. E o tempo que continua a passar. Depressa demais. Contra a vontade. A história a persuadir-nos de que é incontestavelmente grandiosa. Mitologias soberanas. A dialéctica transformada na grande onda que se arrastará até rebentar. Ninguém avança com o espírito como Hegel pretendia. Nem filósofo nem artista. Circularidades da ciência-ficção. Nunca é tarde. Contra a corrente.
An artist is always working. Uma performance que nos propõe as ideias enquanto “capital diferencial dos artistas”. Através dela, o “capital, a operação e o resultado” coincidem9. A vida de um artista como aparelho de produção. A vida como tempo de trabalho. Entre a obra e o produto. Arte e trabalho — ou a máquina interminável da compulsão.
A fábrica não é totalmente do operário, a arte não é totalmente do artista. Nada é a mesma coisa. Disse Nietzsche que falamos de novas coisas e de coisas novas, apesar de continuarmos a fazer o que sempre fizemos. A “poeira da história”.10 Por vezes acontece que quem força a voz desde o começo ganha à falência e ao colapso. Conhece a prova do mundo, antecipa a experiência contemplativa da linguagem: o silêncio.
A fábrica não é totalmente do operário, a arte não é totalmente do artista. Nada é a mesma coisa. Disse Nietzsche que falamos de novas coisas e de coisas novas, apesar de continuarmos a fazer o que sempre fizemos. A “poeira da história”.10 Por vezes acontece que quem força a voz desde o começo ganha à falência e ao colapso. Conhece a prova do mundo, antecipa a experiência contemplativa da linguagem: o silêncio.
Notas sobre a desigualdade:
‘Graças ao trabalho, os homens são ricos em rebanhos e bens;
e pelo trabalho serás muito mais estimado pelos imortais
[e pelos mortais, porque eles muito detestam os ociosos].
Trabalho não é vergonha, é o ócio que traz vergonha.
Se trabalhares, em breve te inveja o homem ocioso,
Porque enriqueces; à riqueza, seguem-na o mérito e a glória.’11
‘Graças ao trabalho, os homens são ricos em rebanhos e bens;
e pelo trabalho serás muito mais estimado pelos imortais
[e pelos mortais, porque eles muito detestam os ociosos].
Trabalho não é vergonha, é o ócio que traz vergonha.
Se trabalhares, em breve te inveja o homem ocioso,
Porque enriqueces; à riqueza, seguem-na o mérito e a glória.’11
9 Pedro Barreiro - in An artist is Always working, www.alwaysworking.art .
10 Friedrich Nietzsche - Considerações Intempestivas. Lisboa: Editorial Presença, 1976, p.177.
11 Hesíodo - Teogonia. Trabalhos e Dias....p. 104.
10 Friedrich Nietzsche - Considerações Intempestivas. Lisboa: Editorial Presença, 1976, p.177.
11 Hesíodo - Teogonia. Trabalhos e Dias....p. 104.
‘O dinheiro é esse conceito material, existente, a forma da unidade, ou ainda a possibilidade de todas as coisas da necessidade. A necessidade e o trabalho elevados a essa universalidade formam assim para si, num grande povo, um imenso sistema de comunidade e dependência recíproca, uma vida do que está morto movendo-se em si própria <autónoma>, uma vida que, no seu movimento, se agita de uma maneira cega e elementar e que, como um animal selvagem, precisa de ser continuamente domado e dominado com severidade.’12
‘Ne travaillez jamais.’13
‘An Artist is Always Working.’ 14
12 Guy Debord - Levantamento das citações ou desvios de ‘A Sociedade do Espectáculo’. Paris: Farândola, 2003. , p. 3: ‘onde o mentiroso mentiu a si próprio”: desvio de Hegel, ‘A Ciência da Lógica’: “o verdadeiro verifica-se”; “o movimento autónomo do não-vivo”: desvio de Hegel, ‘A Primeira filosofia do espírito’ (Iena, 1803-1804); cf. 215. Na nota introdutória desta publicação é referido que este Levantamento foi estabelecido, em grande parte, segundo as indicações fornecidas pelo próprio Debord aos seus tradutores em língua portuguesa, em 1971. Neste caso o tradutor foi Pedro Jofre.
13 Frase do conhecido graffiti da autoria de Guy Debord, 1953.
14 Performance de Pedro Barreiro. Ver nota 2 deste texto.
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13 Frase do conhecido graffiti da autoria de Guy Debord, 1953.
14 Performance de Pedro Barreiro. Ver nota 2 deste texto.
— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia