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Agora irrompe sobre o herói um estranho soluçar


A Imunologia Geral é o sucessor legítimo da metafísica e a teoria real das “religiões. “ A Imunologia Geral exige que se superem todas as distinções operadas até aqui entre o próprio e o estrangeiro. Assim se desfazem as distinções clássicas entre amigo e inimigo. Quem continua na linha das separações anteriores entre o próprio e o estrangeiro produz perdas imunitárias não somente para os outros mas também para si mesmo.1

1. Peter Sloterdijk — Tens de mudar de vida. Lisboa: Relógio d´Água Editores, 2018, p.553.



ninguém sonha em chegar a ser pois cada um já é 2

2. Em Fevereiro de 2007 a contracapa do jornal La Vanguardia publicou a entrevista que Víctor Amela realizou a um Tuaregue, povo nómada do deserto do Saara e que constitui um dos vários grupos que forma a população berbere do norte da África. Considerados  nómadas e livres, sem donos e sem líderes. A uma outra pergunta do jornalista, respondeu o entrevistado, Moussa Ag Assarid: “ tu tens o relógio, eu tenho o tempo.” in — “ La entrevista a un hombre del desierto : Tú tienes el reloj, yo tengo el tempo.” “.


A fragilidade inscreve-se na vida quotidiana. Em casa e na rua. Sem consolo e sem catástrofe. O desencanto torna-se, oficialmente, o lugar da radicalidade e da aniquilação. Sempre que o poder do sistema aumenta, tanto menor é a importância que atribui às faltas dos seus membros. Estes, deixam de parecer perigosos e subversivos, disse Nietzsche.  Uma outra ars  vivendi. É nesta apreensão de uma existência imperfeita que as obras de Filipe Marques reclamam a experiência de um corpo vivido, na sua dupla condição de memória e de finitude. Enquanto afirmam a sua aproximação a uma certa intensidade do acontecimento,  a ele parecem querer resistir. O espaço expositivo, tornado observatório voyeurístico e psicossocial, impõe-se como máquina  escópica. O olhar que despe. O olhar que veste. Olhar e ser olhado. O risco está lá fora. Na passagem das sociedades disciplinares para as de controlo, é a retórica da interioridade que se integra nos circuitos da economia, articulando o corpo com os saberes e poderes que sobre ele se exercem. O poder como produtor de verdade e a verdade como produtora de poder. A glorificação da concordância  naturalizada entre estruturas objectivas e estruturas cognitivas. É esse corpo, com efeito, que, por natureza e dependendo de si próprio, ainda se pode constituir como força animal, ou, se quisermos pensar com Deleuze, uma formação delirante que se apropria de diversos meios e momentos, ligando-os, conduzindo-os ao limite. Na escrita e na arte:

Há uma  trans-sexualidade microscópica presente por todo o lado, que faz com que a mulher tenha em si tantos homens como o homem, e o homem mulheres, capazes de entrar, uns com os outros, umas com as outras, em relações de produção de desejo que subvertem a ordem estatística dos sexos. Fazer amor não é ser-se um só, nem mesmo dois, mas cem mil. As máquinas desejantes ou o sexo não humano, são precisamente isto: nem um nem dois, mas n...sexos (...) n...sexos num sujeito, para lá da representação antropomórfica que a sociedade lhe impõe e que ele próprio atribui à sua sexualidade.3

3. Gilles Deleuze, Félix Guattari —O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1. Lisboa:  Assírio e Alvim, 2004, p. 308.

São as ressonâncias de uma aventura íntima, a coragem e os desafios de um tempo simultaneamente individual e colectivo, que esta exposição nos devolve. A sua força motriz — quase cénica e táctil, quase signo mundano — reveste-se de uma capacidade de efabulação, de perfeição ritual,[1] formalizada num programa que se propõe curto - circuitar qualquer categoria totalizadora ou relação de domínio.

Mergulhados nas sombras de uma atmosfera que nos aproxima da imagem de um subterrâneo — talvez um atelier ou uma casa? — e das personagens do filme Underground, de Emir Kusturica, a história revela-se na sua condição poética e trágica, sem fim à vista. Não há herói sem fatalidade. Não há destino sem irracionalidade. 

A violência que se democratiza na ordem das coisas ou, para usar uma expressão de Saint-Just, “a luta entre o demónio da esperança e o do irremediável”, configura a intencionalidade subjacente à representaçãoiconográfica que nos é apresentada. A impossibilidade de encontrar no território que emana deste projecto expositivo um qualquer programa tranquilizador, que a disseminação cromática verde não apaga,  alastra-se, como um vírus, ao conjunto das obras e aos múltiplos sentidos que o objectivam. A apropriação crítica de imagens e textos que revelam a degradação da experiência, é ainda marcada pelo fluxo de sons e dispositivos insólitos os quais, ora desmoronando-se, ora reorganizando-se, operam um certo choque espectacular. Ainda ecos nietzschianos e a vida no arame:

4. Gilles Deleuze — Proust e os Signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.5. E mais adiante: “O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a "substitui", pretende valer por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula pensamento e ação, e se declara suficiente.(…) Somente os signos mundanos são capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, exprimindo sobre nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los.

Encontra-se sempre na imanência arames com tensão suficiente para suportar os passos dos que atravessam. (...) Cada passo no arame deve ser praticado dez mil vezes e, ao mesmo tempo, cada passo lá em cima deve ser dado como se fosse o primeiro. Quem treina para o arame submete-se a uma paideia que retira todo o fundamento aos hábitos do solo. Caminhar sobre o arame significa juntar no presente tudo o que foi. É a única maneira de poder transformar numa série de exercícios quotidianos o imperativo “ Tens de mudar a tua vida!” “5

5. Peter Sloterdijk  — Tens de mudar de vida. Lisboa: Editora Relógio d´Água, 2018, p. 259.

Numa espécie de dramatização e plasticidade espacial, através das quais a própria luz parece objectivar-se como manifestação de estados anímicos, são as imagens em movimento, formas escultóricas e sonoras que, instaurando uma esfera de transgressão, denunciam ortodoxias culturais, antropológicas, políticas e identitárias. São estas que o artista confronta através do recurso a alguns enunciados críticos da história da filosofia.

Conduzindo-nos a uma certa filiação romântica que aspira à ideia de uma natureza não contaminada, a arte, tal como aqui nos é proclamada, não deixa de inscrever-se no domínio da libertação antropológica e no campo da mediação entre a natureza e a cultura. Operando uma certa tensão política entre as ruínas da natureza, a fugacidade da época e a reclusão do sujeito que o esgotamento convoca,Filipe  Marques poderia ter respondido como Caspar David Friedrich quando, em 1821, recusando o convite do poeta russo W.A. Shukowski, argumentou:

Devo continuar só e saber que estou só para contemplar e sentir inteiramente a natureza; devo abandonar-me ao que me rodeia, fundir-me com as nuvens e as rochas com a finalidade de ser o que sou. Preciso da solidão para o diálogo com a natureza.6

6. Caspar David Friedrich — citado por  Simón Marchán Fiz  — La disolución del classicismo y la construcción de lo moderno . Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2010, p. 334.

O abandono como analogon de um mundo potencialmente convertido em fracasso. Ou, pelo contrário, deslocar incessantemente o sistema para  um teatro da crueldade. A escrita artaudiana  da vida e do sangue. A imanência  como abertura. O desmedido. Quando se trata de escavar a cadeia significante, é a ficção estruturante da linguagem — o que esta sempre é — que abre o caminho ao real.

Sobre as relações entre a imagem e o objecto, as obras subtraem-se à palavra meramente descritiva ou ilustrativa : solipsismo, líbido, pandemia, são apenas alguns exemplos da nossa gramática organizada e normalizada que I Don´t Know Karate but I Know Ka-Razor se propõe fazer explodir. A medida do crash. As  classificações individualizantes são substituídas por dispersões  de acontecimentos e palavras. Não se trata de reintroduzir a linearidade mas, antes, o intempestivo.

Weltschmerz.7 A solidão na violência de uma navalha. I Don´t Know Karate but I Know Ka-Razor. A  probabilidade de não ter compreendido nenhum sinal. Quando tudo falha, you wanted to be alone for a while.

7. Conforme indicado na folha de sala que acompanha a exposição, trata-se de uma noção do romance Selina,1827, do escritor alemão Jean Paul Richter, cuja tradução se assume como” a grande dor ou cansaço do mundo”.




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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia


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