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A cidade muda, a cidade nua

[PREFÁCIO DO TEXTO DRAMÁTICO DA AUTORIA DE PEDRO FIUZA]




Um escritor chama a si o espaço libertador da deriva. Celebra o nomadismo urbano. Inscreve-o em topografias nas quais a existência cede à forma da clausura. Atracções que se perdem nos trajectos das memórias, sem contratempos. Apenas a desatenção que se abre ao olhar da morte. Reciprocidades.

A cidade nua sobre a qual nos é dito que ainda assim tenho mais medo dos meus medos do que medo de morrer. O prolongamento nos ossários. Naked City ou o mapa psicogeográfico debordiano. Centro e periferia que se desmoronam no anonimato. Disse Walter Benjamin, retomando Baudelaire, que a cidade era, para o flâneur, uma paisagem. Nesta   cidade muda encontramos mais ressonâncias do Homem da Multidão e menos flânerie:

uma ou mais pessoas durante um certo período de tempo abandonam, as suas relações, o seu trabalho e as suas actividades de lazer e todos os seus propósitos habituais, optando pelo movimento e pela acção, deixando-se levar pelas atracções do lugar e pelos encontros fortuitos.1

1 Guy Debord - “Theory of the Dérive”, in Ken Knabb (ed.) – Situationist International Anthology (revised and expanded edition). Berkeley: Bureau of Public Secrets, 2006, p. 62.

A cidade não é uma verdade, é uma sintomatologia. Uma encruzilhada: esta terra tem muitos pobres. Pobres. O terror dos ricos. Viver também é perder. Perder-se. Ardente e negra, assim é a cidade de Pedro Fiúza.

O longo ziguezaguear do mundo conduz-nos para um desfile de muros e sombras. Nesta cidade que é casa, que é muda e nos muda, lugar de armadilhas sem nome e da vagarosa paciência da solidão, as mulheres gritam nos supermercados. Encontros e desencontros. Expectativas.

A tranquilidade do medo. O mundo da cidade. Aquele que encontramos, descobrimos e ficcionamos. Possibilidades que se convertem  em forças activas:

Quando o sono não vinha, bastava-lhe, a ela, imaginar um vasto campo de trigo ondulado pelo vento e adormecia imediatamente. Com a imagem de uma cidade não obteríamos o mesmo resultado. É inexplicável, é miraculoso que um citadino consiga alguma vez pregar olho.2

2 E. M. Cioran - Do inconveniente de ter nascido. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 57.

A cidade é uma palavra sem fronteiras. Present continuous tense. Voyage, Voyage. Quando escapa à fortaleza da lei, a cidade transborda como a linguagem. Um fora de si. Sem regime geográfico, dispersa-se constantemente para se desterritorializar e reterritorializar num qualquer outro lugar.

A fome atravessa as portas. Instaura pactos entre os vizinhos. Queremos viver.  Ruas no início e no fim. Habitadas pelo tempo. Por vezes são a nossa vida. A cidade em vigília. A noite espera o dia no momento em que tudo parece terminar. O esquecimento que se deixa adormecer. Apenas intervalos. Recomeços. As pessoas. O que quer que digam é sempre nada mais que o esperado. Ainda o que está para vir. Massas nebulosas entrelaçam-se, abandonadas. Espaços perdidos. Chegamos sempre tarde. É sempre tarde.

A cidade. Como num filme de Sokurov, quando o filho pergunta à mãe: “é bom viver aqui?“ A mãe responde: “Não é mau viver aqui, mas, de certo modo, é opressivo”. A morte como a última das transgressões.

A cidade necrópole que o autor nos entreabre tem a mesma força dos cemitérios que Michel Serres enuncia:

Tornamo-nos os homens que somos quando descobrimos, não sei quando nem como, que teríamos que morrer; que os nossos parentes, que as pessoas que amamos, haveriam de morrer. Na semana dos mortos, entremos, hoje, nos nossos cemitérios. Noto que até certo ponto se parecem com cidades, com as suas ruas, as suas praças, avenidas, os seus imóveis de família [...] com os seus bairros para ricos e os seus bairros de pobres. Metrópole, necrópole.3

3 Michel Serres - “Pequeñas crónicas del domingo en la noche”. Entrevista com Michel Polaco. 30 de outubro, 2005, in Ciencias Sociales y Educación, 8 (15), Enero-Junio de 2019, p. 293.

Como numa fotografia, a cidade torna-se Cinza.4 Um lento desaparecimento de si e a sua razão de ser. Qualquer coisa que “fica sem ficar”. As mãos estão sempre a morrer , diz-nos o texto. Sabemos que este é o reino onde se inscrevem todas as epidemias. A cidade [que] dança. A cidade. Qualquer cidade. Conversas inundadas pela austeridade do mundo. A representação torna-se um sopro, um turbilhão inoportuno. Perturbações. Disparidades. Coisas há que não vale a pena dizer. Nem sempre entendemos bem. Lições de gramática. A linguagem muda. Sempre a realidade. Todas as ilusões. O que podemos esperar de uma cidade? O fogo e o vento. As mãos que nos ligam. Não nos imaginamos a viver sem as mãos.

4 Jacques Derrida - Points de suspension. Paris: Galilée, 1992, p. 221.


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*a autora escreve segundo a antiga ortografia

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