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Thomas Ruff
Porträt




Porträt (T.Ruff), 1987, prova cromogénea a cores. https://www.thomasruff.com/werke/portrats/#pid=60

Diz Valeria Liebermann (2003, 46-48) que “a maior parte das obras desta série foram, na sua maioria, executadas em dois formatos. Entre 1984  e 1986 Thomas Ruff experimentou várias dimensões para os seus Porträts, tentando explorar um outro formato para além da ‘realidade entre’ (24x18cm). Quando conseguiu realizar cinco provas no maior tamanho disponível de papel fotográfico, descobriu que uma imagem totalmente nova tinha surgido. Através da ampliação, o olhar e a expressão dos modelos intensificavam-se e, simultaneamente, a presença visual da fotografia passava para primeiro plano. O projecto foi interrompido em 1991 quando o papel fotográfico que usava saiu de produção. O papel que veio substituir tinha uma gama de cor e de contraste tão ampla que já não servia para os seus retratos. Em 1998 (...) iniciou uma série de testes, combinando película, métodos de revelação e diversos tipos de papel fotográfico de forma a conseguir obter um resultado próximo dos seus trabalhos anteriores. Se, por um lado, Thomas Ruff procurava saber se era ou não legítimo imitar-se a si próprio, por outro questionava se os seus modelos entre os 20 e 35 anos eram diferentes dos modelos da mesma idade que fotografara quinze anos antes.”






“O devir-louco, o devir-ilimitado não é mais um fundo que murmura, mas sobe à superfície das coisase se torna impassível”.
(Deleuze 1998, 8)




O programa artístico de Thomas Ruff (1957-) articula-se com a cultura fotográfica da Academia de Düsseldorf, a qual, como sabemos, marcou a fotografia alemã dos anos oitenta. Os responsáveis por este projecto foram Bernd e Hilla Becher, cuja participação na contemporaneidade artística é suficientemente reconhecida. Exerceram ainda uma grande influência nos seus alunos, tanto ao nível da concepção artística das obras como de uma atitude ética e intelectual. Enquanto discípulo dos Becher, Ruff inscreve o seu trabalho num pressuposto fundamental: o de que qualquer meio é legítimo para fazer arte. Deste modo, apresenta não só uma prática marcadamente individual como reveladora da importância da Alemanha no século XX. Interrogando as técnicas fotográficas, a natureza da fotografia, o carácter supostamente exacto, claro e descritivo da fotografia documental ou reflectindo sobre a percepção, a sua obra encontra-se suficientemente próxima e distante da dos Becher. Operando no domínio da meta-fotografia e interrogando o estatuto crítico da imagem, o autor confere o mesmo tratamento às arquitecturas e aos rostos. O questionamento da objectividade e transparência do medium fotográfico, incorpora uma das linhas de trabalho da melhor tradição da arte conceptual.

Como assinala Victor Burgin, a estética do século XIX, que dominou o ensino e a maior parte da produção teórica sobre fotografia, foi já ultrapassada pela investigação semiótica que nos mostrou que a imagem não se reduz a uma forma pura. Ela é um espaço “estruturado e estruturante (…), um dos sistemas de significado da sociedade, que produz o sujeito ideológico no mesmo movimento em que os demais sistemas “comunicam” o seu “conteúdo” ostensivo” (Burgin 2003, 34).

Se, por um lado, a sua obra equaciona alguns dos paradoxos da crença na possibilidade do realismo em fotografia — que acompanha a história da tradição crítica deste meio — por outro, denuncia o carácter redutor e normalizado dos modelos de representação dominantes: “A maioria das explicações da arte do pós-guerra baseadas na fotografia dividem-se num e outro lado desta linha: a imagem como referencial e como simulacral. Esta redutora disjunção restringe tais leituras desta arte” (Foster 2001, 130).

Já desde os retratos de 1980 que Thomas Ruff evita qualquer interpretação de tipo psicológica do retratado, qualquer vestígio de emoção, expressão ou cumplicidade com o fotógrafo. Após ter realizado, entre 1981 e 1985, uma série de retratos com fundo de cor, em 1986 opta pela utilização de fundo neutro, compreendendo a influência demasiado acentuada que a cor adquiria na imagem quando ampliada. Em Porträt 2, realizado no âmbito da série Porträts-neutral background (1986-1991), o autor retrata-se numa espécie de distanciamento auto-referencial. Esta obra cumpre os princípios artísticos estruturantes do seu trabalho (ao contrário dos seus escassos auto-retratos) e manifesta simultaneamente a impossibilidade do auto-retrato como meio de acesso a uma qualquer identidade desconhecida e a revelar. A escolha do autor em se retratar, não intitulando a sua própria imagem como “auto-retrato” mas tão somente, Porträt, (Retrato), denuncia como equívoca toda a intenção de, através da imagem fotográfica, aceder ao “auto”, à identidade, seja ela a dos outros ou a do próprio sujeito que a si mesmo se retrata. Assim, é tornada ambígua, senão mesmo inútil, a tentativa de definição de qualquer fronteira delimitadora das identidades que integram a série Porträts. Semelhantes a milhares de outras imagens que massiva e democraticamente circulam, estes retratos inexpressivos e sem qualquer tipo de espectacularidade visual, aproximam-se das fotografias de passaporte.

2. http://arttattler.com/archiveaugustsander.html 51

O seu afastamento da tradição oitocentista do retrato psicológico, a distância relativa ao entendimento do retrato como forma de trazer à superfície da imagem os segredos da alma ou da crença na imagem fotográfica como representação do verosímil, é uma constante da obra deste artista. Deste modo, Ruff afirma a primazia da superfície, activando uma espécie de operação desconstrutiva do mito do realismo óptico: as “fotografias são naturalmente e sempre imagens, mas, na minha geração, o modelo para a fotografia já não é aparentemente a realidade mas sim imagens que conhecemos dessa realidade” (Thomas Ruff apud Winzen 2003, 26).
Estes meta-retratos em série tornam próximos os retratados mas falta-lhes a sua própria identidade, a sua própria semelhança, a sua origem. Através da série, o significado e o significante trocam de papéis — assegura-se a simultaneidade mas não a igualdade3 (Hürzeler 1994, 50-54). Inscrevendo a existência de um número infinito de indivíduos, é anulada a importância do indivíduo singular; este, agrupado na série, dilui-se no anonimato:

3. Com a série Anderes Porträts Ruff dá continuidade ao pressuposto subjacente ao uso da própria série: o da impossibilidade em representar e fixar a identidade. O artista pediu à Polícia de Berlim uma Minolta Montage Unit que pertencia à sua colecção histórica (era usada nos anos setenta pelos Departamentos Federais Alemães). Nesta série Ruff radicaliza a autonomia entre a imagem e a representação fotográfica: “A máquina de retratos-robot funciona com um espelho com um buraco no meio que permite que uma parte da imagem do rosto de uma pessoa seja misturada na fotografia de uma outra pessoa. (…) Introduzo sempre apenas dois rostos e não há qualquer critério para a escolha; por vezes há dois rostos que funcionam bem um com o outro, dois rostos que eu nunca teria pensado que funcionassem em conjunto” (Hürzeler 1999 apud Winzen 2003, 22).
Não pretendi com o retrato exaltar a pessoa individual. (…) O que me interessa é a representação. Como são criadas as imagens? A imagem que faço de uma pessoa não tem já nada a ver com essa pessoa. (…) É a fotografia de uma pessoa, registada num determinado momento, sob determinadas circunstâncias, nada mais (Winzen 2003, 20).


O carácter singular das suas imagens é encontrado, tal como nas dos Becher, nas relações que se exprimem na lógica tipológica e no âmbito do espaço expositivo. A particularidade destes retratos e o seu aparente despojamento resultam de uma absoluta ausência de espontaneidade, situando-se, antes, numa dimensão primordialmente analítica. O anonimato dos retratados — perante os quais nem a indicação dos nomes é suficiente para que deles conheçamos seja o que for — é reforçado pela repetição da série4, por um sempre igual, pela ausência de acontecimento. Cada série adquire sentido em função de outra série, tal como a identidade subsume a multiplicidade:

4. Sobre o uso da série diz Thomas Ruff: “Aprendi com os Becher que as fotografias têm de funcionar em série, mas também enquanto fotografias isoladas. Além disso, considero uma boa fotografia isolada demasiado dependente do acaso. Para saber como funciona um género de fotografia tenho de fazer uma série, quero seguir a pista do segredo da génese das imagens. No Mercado da arte as fotografias são vendidas isoladamente, mas penso que se tornam então representantes de toda a série.” (Eskildsen, 2003, 38).
A forma serial é, pois, essencialmente multisserial. Já é assim em matemática, onde uma série construída na vizinhança de um ponto não tem interesse a não ser em função de uma outra série, construída em torno de outro ponto e que converge ou diverge da primeira (Deleuze 1998, 40).


Talvez a possibilidade de surpreender se encontre na banalidade da superfície. O múltiplo em cada um. Um que é sempre e já muitos: o porvir deleuziano. A fotografia só reproduz a superfície: nestas imagens a profundidade,
é tão plana como o papel sobre o qual a fotografia foi impressa. (…) Na série Porträts, observamos algo de estruturalmente semelhante. Nas imagens, Ruff faz com que a nossa ilusão de conteúdo (…) se oponha à desilusão formal de estarmos a ver uma fotografia (Winzen 2003, 18).


Essa vontade em não operar para lá da superfície da imagem, do espelho, manifesta o interesse do autor em não distanciar a sua obra da reflexão sobre o próprio suporte, como se o tema fosse indiferente ou um simples pretexto para exibir a série e a superfície. Repetição e não reprodução.

Deleuze, reflectindo sobre Lewis Carroll (explicitando as razões pelas quais o autor modificara o título inicial As aventuras subterrâneas de Alice para Do outro lado do espelho), convida-nos a repensar os conceitos de profundidade e superfície:
Dir-se-ia que a antiga profundidade se desdobrou na superfície, converteu-se em largura. (…) Profundo deixou de ser um elogio (…) não mais penetrar, mas deslizar de tal modo que a antiga profundidade nada mais seja, reduzida ao sentido inverso da superfície. De tanto deslizar passar-se-á para o outro lado, uma vez que o outro lado não é senão o sentido inverso. E se não há nada para ver por trás da cortina é porque todo o visível, ou antes, toda a ciência possível, está ao longo da cortina (…) Não há, pois, aventuras de Alice, mas uma aventura: sua ascensão à superfície, sua desmistificação da falsa profundidade, sua descoberta de que tudo se passa na fronteira (Deleuze 1998, 10).

Porträt mantém-nos na profundidade da superfície — a profundidade em largura ou talvez da margem.5 No limiar da superfície prolonga-se a horizontalidade da série, a grande dimensão da largura. É contornando a fronteira que o avesso se encontra com o direito: “A continuidade do avesso e do direito substitui todos os níveis de profundidade” (Deleuze 1998,12).

5. Retomando as palavras de Michel Tournier, Deleuze recorda o preconceito de associarmos superficial a pouca profundidade e não a vasta dimensão. Pelo contrário, associamos profundo a grande profundidade e não a fraca superfície (Deleuze 1998, 12).

O projecto artístico de Porträts evoca a distância face a uma qualquer concepção substancialista da identidade, ao mito da autenticidade e do individualismo metafísico como condição de acesso a uma qualquer verdade oculta do sujeito. Quando perguntaram a Ruff se para ele é fundamental subtrair-se ao seu próprio processo de criação, respondeu:
Não sei se desapareço do processo de elaboração, se o faço intencionalmente ou se isso tem de facto a ver com este suporte específico. Como fotógrafo conceptual digo: trabalho com película fotográfica, objectivas e objectos colocados diante delas. Nessa medida estou sempre presente como autor nos meus trabalhos, porque aponto para alguma coisa, seja um rosto, uma casa, uma estrela. Estou sempre contido na imagem, quanto mais não seja na escolha do objecto e no enquadramento. Naturalmente, há uma enorme quantidade de fotógrafos que procuram intencionalmente incluir uma assinatura pessoal (…) É algo que não me interessa absolutamente nada. As imagens que surgem, é isso o que me interessa de facto. (Winzen 2003, 29).


O que nos poderia dizer mais um auto-retrato de Thomas Ruff que o retrato de si mesmo já não diga? É o interesse na imagem que mobiliza a estratégia da construção da objectividade: “dadas duas séries, uma significante e outra significada, uma apresenta um excesso e a outra uma falta, pelas quais se relacionam uma a outra em eterno desequilíbrio, em perpétuo deslocamento” (Ruff 2003, 29). Neste âmbito, Porträt cumprindo a tarefa de pensar, duplamente, a imagem de si e a imagem fotográfica, formula a problemática da própria representação, convertendo a objectividade6 (Godard 1989, 54) num instrumento retórico e sublinhando a esplendorosa trivialidade. Abandonando o vínculo binário entre anonimato e autoria, cópia e simulacro, superfície e profundidade, único e múltiplo, retrato e auto-retrato, o eu e o outro, Porträt torna-se a impossibilidade da própria representação.

6. Sobre o início da sua actividade como cineasta e a relação objectividade-subjectividade na sua prática fílmica, diz Godard: “No princípio somos mais subjetivos, e depois percebemos que essa subjetividade é controlada por outra coisa; por isso tentamos recuperar o controle e, para ser enfim objetivamente subjetivos, controlar o que é objetivo, para poder liberar a subjetividade. E depois abandonamo-nos à nossa subjetividade, do mesmo modo que, como espectador, tenho a minha; (…)” (Godard 1989, 54).




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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia


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