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Deus ex machina. A pintura como acidente




Houve sempre estas duas espécies de artistas, estas duas espécies de impedimento, o im- pedimento-objecto e o impedimento-olho. Mas estes impedimentos eram tidos em conta. Havia acomodação. Não faziam parte da representação, ou muito pouco. Aqui [em Bram e Geer] fazem parte. Dir-se-ia a parte maior. É pintado aquilo que impede de pintar.1

1. Samuel Beckett — Le monde et le pantalon, suivi de Peintres de l’empêchement, Paris: Minuit,1990, p. 56.


Três pinturas e um andor. Continuidade, passagem e transição entre obras, convocam a ideia de ligação para um território expositivo que se quer implicado entre registos diferenciadores. PM articula um núcleo de pinturas construídas através de processos fotomecânicos transferidos formalmente para a tela. Se, por um lado, é evocado o sentido do trabalho e a lógica da manufactura que acompanha a tradição sacralizadora da pintura, por outro, é ainda esta condição histórica que  funciona como dispositivo de enunciação de um certo imaginário da austeridade e de uma ontologia do sacrifício como Andor parece objectivar. Sem qualquer tipo de renúncia ou a evidente procura de um lado certo, todos os campos de trabalho da produção artística são considerados na sua liberdade potencial.

Às obras PM#85 e Andor — já anteriormente apresentadas em espaços distintos — a primeira em 2021 na galeria Fonseca Macedo, e a segunda numa exposição colectiva no âmbito de um projecto colaborativo na cidade do Porto, em 2020 — juntam-se PM#107 e PM#108. Reivindicando uma prática pictórica que se subtrai a qualquer narrativa teleológica, o programa intempestivo que João Ramos nos propõe no Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas, ultrapassa as fronteiras e limites do medium. Através de uma argumentação que subverte criticamente a probabilidade de uma qualquer tese aurática, são expressas uma multiplicidade de interacções conceptuais entre a imagem, os limites da representação e o campo discursivo da pintura. Uma forma de arqueologia histórica vincula a tradição, a origem, a continuidade ou a ruptura. Aparentemente distantes, PM#85 e Andor, tal comoPM#107 e PM#108, não deixam de, conjuntamente, nos projectar tanto para uma escala de grandeza e altura como para uma dimensão ascética e religiosa — uma poética da elevação que se afasta de uma qualquer perspectiva revivalista da pintura:

De facto, o que a pintura actual tenta de uma forma autoconsciente é conseguir a intensificação da aura através de uma grande variedade de meios, seja enfatizando a mão do artista, seja criando imagens visionárias altamente individuais que não se podem confundir com a própria realidade ou outra qualquer.2

2. Barbara Rose ­— Americain Paintings: The Eighties. Bufallo: Thoren-Sidney Press, 1979, s.p.

Se, por um lado, podemos dizer, como afirmou Gilles Deleuze para a filosofia, que a pintura não morreu, pois “começar significa eliminar todos os pressupostos”3, por outro, o capital simbólico e económico que a pintura secularmente herdou inviabilizaria qualquer desaparecimento desta prática. A morte da arte não configura apenas uma narrativa crítica e poética na medida em que constitui, ela própria,  o interminável fetichismo e expectativas do mercado e do capital.

PM#107 e PM#108 devolvem-nos a imagem de uma antena registada no Pico da Barrosa, uma zona de elevação situada aproximadamente no centro geográfico de São Miguel, Açores. Este local constitui, paradoxalmente, uma das regiões fortemente marcadas pela densidade turística daquele que é considerado o único arquipélago no mundo certificado como Destino Turístico Sustentável — desordens inseparáveis que estruturam o funcionamento patológico do sistema, iniciativas que registam o grau de aparência necessário ao cumprimento de objectivos que o neoliberalismo impõe por direito próprio. É do intenso crescimento e ainda das cínicas relações entre arte e turismo, que, sobriamente, a obra de João Miguel Ramos nos dá conta — presença e actualidade da lição adorniana — a aporia entre o que pertence à arte e o que se integra na esfera da comunicação. A teia de relações da cultura de massas, entre a adaptação, a dependência e a ordem:

3. Gilles Deleuze — Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Edições GRAAL, p. 215.

A indústria da cultura é a integração propositada dos seus consumidores a partir de cima. Ela impõe igualmente a junção do domínio específico da arte maior e o da arte menor, domínios que estiveram separados durante séculos. Junção que é desvantajosa para ambos.(...) Tal como foi referido por Brecht e Suhrkamp (…) os produtos culturais regulam-se pelo princípio do seu valor de troca e não pelo seu próprio conteúdo e uma lógica formal intrínseca.4

4. Theodor W. Adorno — Sobre a indústria da cultura. Coimbra: Editora Angelus Novus, 2003, pp. 97-98.

Do processo mecânico que simula a impressão — estabelecendo o erro e o obsoleto como instrumentos de trabalho — à máquina como agente que sobreproduz e expande desmedidamente a informação, é com as falsas divisões entre representação e realidade, documento e ficção, cópia e original, que A Transmitir de nos confronta. Superfícies pictóricas que se organizam em extensas manchas monocromáticas ­— ­tomadas por rastos avermelhados ­— concentram pulsões que se inscrevem tanto no corpo como fora dele. Únicas e anónimas. Naquelas, transparece a apropriação de altas estruturas configuradas em marcas de torres de comunicação e radiodifusão. Figuras, paisagens e objectos associam o projecto expositivo à expansão acrítica da ideologia massificada dos meios de comunicação, assim declarando a arte transfigurada em estratégia publicitária, marketing e propaganda. Um abundante aparelho produtor de consensos promove o funcionamento da engrenagem, zelando pela sua segurança uniformizadora. É ainda o gesto pictórico que aqui recusa a conversão da arte em imagem de um vazio retórico comunicacional ou, se preferirmos, do princípio do negócio que se tem constituído no manual de instruções para um vasto campo da prática artística actual.

Levantar o Andor parece transformar-se no signo da adoração e do sacrifício, exílio metafísico dos fora da lei como de todos os que vivem por sua própria conta e risco. O medium enquanto cerimonial religioso que se impõe como objecto de combate e superação. O sagrado e o profano. Arriscar a escuridão primitiva, a natureza e o mundo animal, as entranhas e as forças elementares da vitalidade esquecidas no tempo dos nossos historiadores. Como um deus ex machina, Andor  aproxima-se dos céus para melhor se humanizar — libertar como um golpe de teatro, a catástrofe ou a grande subversão:

O verdadeiro problema reside, antes, no facto de uma grande maioria não querer a liberdade, no facto de até ter medo dela. É preciso ser livre, para chegar a ser livre, porque a liberdade é existência (…). É, então, que o ser humano é livre, e o mundo cheio de coacção e de meios de coacção tem de servir, daqui em diante, para tornar visível a liberdade em todo o seu esplendor, do mesmo modo que as massas da pedra primitiva, pela pressão que exercem, fazem germinar os cristais.5

5. Ernst Jünger — O passo da floresta. Lisboa: BCF Editores, p. 119.

De cada vez que uma obra é salva da corporação da geopolítica mainstream que desenha a agenda do mundo da arte e sempre que o artista não se permite tornar presa fácil da tão aplaudida “carreira”, Andor torna-se no lugar de dádiva e possibilidade de fuga do estereotipo social — um corte que perturba o regime, a lógica e a lei. Apenas resta imaginar uma outra formulação que transforme o cálculo em desejo, a falta em excesso, o domínio em  encantamento.
Transmitir de, manifestando uma espécie de sentimento de não-pertença, torna a singularidade da experiência na forma de um lugar comum — um espaço no qual a acção livre se “preocupa com o mundo como um todo6 assim acrescentando a energia do desconhecido à grandiosidade do fracasso:

6. Ernst Jünger — O passo da floresta..., p. 90.

É lá que se começa enfim a ver, no negro. No negro que não teme mais nenhuma aurora. No negro que é aurora e meio-dia e tarde e noite de um céu vazio, de uma terra fixa. No negro que ilumina o espírito.7

As dúvidas de sempre — iconografias, épocas, códigos, influências — as dúvidas de um amador, do amador sábio, aquele com o qual sonham os pintores, escreve Samuel Beckett.8 O pintor e o alfaiate. O caos e a ordem. Le monde et le pantalon.

7. Samuel Beckett — Pioravante marche [Worstward Ho]. Lisboa: Gradiva, 1988, p. 75.

8. Samuel Beckett — Le monde et le pantalon, suivi de Peintres de l’empêchement.., p. 9.


Repetidamente a mesma estranheza.




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— Texto escrito de acordo com a antiga ortografia


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