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Coup d´oeil


Exposição de Mariana Gomes
https://www.galeriapedrooliveira.com/press/mariana_gomes_2025.htm




o melhor é não olhar
(Samuel Beckett)

Que em todos os lugares nos perdemos já o sabiam Vladimir e Estragon. Sempre à espera que tudo acabe. O limite do tempo. Adiar o deserto. No começo, somente cinzas. Ou o riso. Podia ser Rubens ou Goya mas é a sátira convocada pela gravura de Hogarth — Time Smoking a Picture — que se adivinha no programa crítico de Mariana Gomes. Sentado numa estátua destruída e rodeado de fragmentos espalhados pelo chão, Saturno fuma calmamente um cachimbo. Uma foice perfura a tela — já Cronos, como um ceifeiro, de lâmina afiada, cortara os genitais ao seu próprio pai. No cimo da moldura podemos ler que o tempo não é um grande artista, mas enfraquece tudo aquilo em que toca. O tempo que devora o tempo, a arte que devora a arte, o tempo da finitude. Que outro poderia ser? O que fazer com a pintura? Comecemos pelas Musas, escreveu Hesíodo. Cronos e Saturno. Grécia e Roma. As histórias são como as imagens, construídas para nos entregarmos aos
outros, acontecimentos que estão fora do tempo e o atravessam:
O devir-louco da profundidade é pois um mau Cronos que se opõe ao presente vivo do bom Cronos. Saturno ruge no fundo de Zeus. [...] O passado e o futuro como forças desencadeadas vingam-se num só e mesmo abismo que ameaça o presente e tudo o que existe. [...] A desforra do futuro e do passado sobre o presente, Cronos deve ainda exprimi-la em termos de presente, os únicos termos que ele compreende e que o afetam. É a sua maneira própria de querer morrer.11—Gilles Deleuze — Lógica do Sentido.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1998, p. 169.

A pintura táctil da artista, uma arte da superfície — como escreveu Deleuze sobre Bacon — aceita sem reservas o imperioso direito de passagem entre o humor e a linguagem popular, o banal e o sentido. O espaço pictórico, abrigando tanto a sombra como a voluptuosidade da cor, faz existir o que o percorre. Afirma-se como materialidade. Distante de taxinomias representativas, da procura de uma qualquer virtude das evidências ou da hierarquia entre forma e conteúdo, discurso e figura, é a desordem que a efabulação convoca. A abstracção e a figuração nunca deixaram de ser o mesmo cadáver para múltiplos segredos e recomeçadas experiências que potenciam efeitos de deslocação da realidade. Na obra de Mariana Gomes, sem paisagens antecipadas e objectos previstos, trata-se, à maneira beckettiana, do fracasso de pintar, à semelhança do fracasso de nomear — um gesto fora do quadro. Tudo o que é visível organiza-se em função das margens, escreveu Matisse. A tela é a pele de um corpo percorrido por dobras que, no espaço, se abrem aos acontecimentos do mundo — um corpo comum no qual o desejo se identifica com a pintura e através dela existe. Uma alquimia de tintas fluidas ou em camadas entrega-se a uma poética que, não procurando qualquer reconciliação ou harmonia, explode no fogo da miragem. Nesta aventura, a imaginação constitui-se como arma prodigiosa que não obedece à mistificação da “arte pela arte”, antes procura a necessidade do êxtase que se tece entre linhas e manchas. Um olhar que ultrapassa a forma da mera interioridade. Trata-se, sobretudo, do confronto com o horizonte no qual se inscreve um singular desapego. Sem acções e narrativas explicativas é a indeterminação que, nestas obras, ainda se pode afirmar enquanto condição e território do acto de pintar. Entre o impossível e o necessário, a experimentação e a autonomia tornam-se o modus operandi da gestualidade e condição da sua hiper-realidade. Entre estratégias de paródia e apropriação, exprimem-se manifestações alheias a proposições sobre os fundamentos da pintura, ausência dejustificações conceptuais sobre o lugar que esta ocupa no campo da arte ou até questionamentos em torno das suas condições de possibilidade. O branco é a diferença:
O branco da tela, cor que já lá está, impensada uma vez que sempre coberta pela “cor”, é originalmente a proposta do trabalho. Não se trata de nada além do que tornar esse branco, essa cor significante-Cor a cobrir por uma outra cor para marcar, a partir do exterior, o interior dessa diferença que a torna diferença.22—Louis Cane — “O pintor sem modelo, nota prática sobre uma pintura”, in Glória Ferreira e Cecília Cotrim (orgs.) — Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 295.
O que esta exposição nos oferece, como nas Saturnais romanas, é celebração e festa, sagrado e alegria trágica, vertigem e excesso. É o compromisso da libertação e da cor que se torna enunciado, pathos e impulso, causa e efeito — a Idade de Ouro. A densidade física que as imagens propõem evoca a soberania de um combate no qual a comédia humana nos define e nos salva. Por aqui não encontramos a teleologia da boa consciência. O que pode ser o tempo quando não esperamos nada dele?


Eduarda Neves
*a autora escreve de acordo com a antiga ortografia

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